Alternativa
Técnica pouco utilizada no Brasil, transplante fecal tem eficácia de até 94%
A implantação de parte da microbiota de pessoas saudáveis em intestinos desequilibrados pode evitar a proliferação descontrolada de micro-organismos resistentes a antibióticos
Por: Correio Braziliense
Publicado em: 01/10/2015 15:03 Atualizado em:
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O uso indiscriminado de antibióticos pode resultar no surgimento de micro-organismos resistentes ao tratamento e responsáveis por infecções hospitalares fatais. A estimativa é de que hoje as superbactérias matem 700 mil pessoas por ano no mundo. Um estudo publicado na revista científica Plos Pathogens sugere uma intervenção inusitada para evitar que a ação de dois patógenos responsáveis por cerca de 10% das contaminações sem controle seja potencializada: o transplante fecal.
O procedimento consiste em utilizar fezes de pessoas saudáveis para colonizar o intestino de pacientes que sofrem um desequilíbrio crítico na microbiota. “Ocorre uma briga por alimento, as bactérias saudáveis comem os alimentos das resistentes, eliminando-as”, explica Arnaldo José Ganc, gastroenterologista do Hospital Israelita Albert Einstein. A instituição realiza o procedimento há dois anos.
O estudo detalhado na revista científica foi feito com ratos e pesquisadores do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em Nova York, nos Estados Unidos. Observou-se, no intestino das cobaias, as interações entre a Enterococcus faecium (VRE), resistente ao antibiótico vancomicina; e a Klebsiella pneumoniae, resistente ao carbapenes. Comuns na microbiota, os dois patógenos, em situação de desequilíbrio, podem se espalhar pelo resto do corpo ou para outros pacientes, causando infecções localizadas ou sistêmicas.
A primeira descoberta do grupo foi a de que as bactérias ocupam os mesmos locais no intestino e não competem entre si. Esse dado sugere que elas satisfazem as suas necessidades metabólicas específicas sem disputar por nutrientes. Já se sabia que o transplante de fezes de ratinhos saudáveis para os doentes pode eliminar a VRE. A intenção era saber se o mesmo procedimento pode limpar o intestino da K. pneumoniae e depois da VRE com a K. pneumoniae.
As cobaias foram contaminadas com as duas superbactérias simultaneamente. Durante três dias consecutivos, um grupo foi submetido ao transplante fecal. Outro recebeu uma solução de controle estéril, composta por medicamentos que exterminam de forma indiscriminada os micro-organismos. Em todos os roedores submetidos ao transplante, a K. pneumoniae diminuiu em um dia e se tornou indetectável no prazo de sete dias. A VRE foi eliminada em 60% desses animais e reduzida nos 40% restantes.
Nos bichos do grupo de controle, o nível dos patógenos permaneceu elevado. “A descoberta dessas características, anteriormente desconhecidas, de como a VRE e a K. pneumoniae colonizam e se disseminam no intestino, dará indicativos de como erradicá-las”, explica Eric Pamer, do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center e um dos coautores do trabalho.
Guilherme Andrade, gastroenterologista e coordenador do Centro de Gastroenterologia do Hospital 9 de Julho, em São Paulo, tem opinião parecida. “A pesquisa é uma esperança concreta para pacientes que são infectados por bactérias resistentes nos hospitais, local em que elas são mais encontradas”, comemora. Segundo o especialista, a estimativa é de que o corpo de um adulto tenha 2kg só de bactérias.
“Elas vivem no intestino e carregam 100 vezes a carga genética de um ser humano. Antes, usávamos remédios que eliminavam toda a flora intestinal, o que desregula o intestino. Já o transplante fecal repovoa o intestino com bactérias boas e mata as más.” O procedimento, porém, tem riscos. As fezes são uma mistura complexa de bactérias e outros micro-organismos; embora exista uma análise rigorosa com os doadores, a possibilidade de que um agente patogênico passe despercebido é real.
No Brasil
O primeiro transplante fecal realizado no Brasil foi feito no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, em 2013. A técnica foi utilizada para o tratamento da colite (inflamação do intestino grosso) pseudomembranosa causada pelo Clostridium difficile. Desde então, segundo Arnaldo José Ganc, gastroenterologista da instituição, 35 procedimentos foram realizados. “Em apenas dois, precisamos refazê-lo”, conta.
Apesar dos resultados promissores, a prática é pouco difundida entre a comunidade médica brasileira.“Aqui, ainda existe muita resistência em relação ao transplante fecal. Fora do país, esse é um procedimento utilizado há muito tempo. Difundi-lo aqui será um grande passo para reverter infecções que podem ser fatais”, aposta Victor Yokana, do Núcleo de Gastroenterologia do Hospital Samaritano de São Paulo. A adoção do transplante fecal tem que passar pelo crivo do comitê de ética do hospital em que será feito o tratamento.
EUA criam banco de doadores
O primeiro banco de fezes do mundo, criado por uma organização sem fins lucrativos chamada Open Bioma, foi instalado no início deste ano, em um prédio de escritórios comum no norte de Cambridge, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Lá, todas as manhãs, aparece cerca de uma dúzia de jovens com aspecto saudável. Alguns chegam com os pacotinhos das amostras colhidas, outros fazem a coleta no próprio local. O laboratório fornece o material para o transplante para 350 hospitais em todo os EUA.
A seleção dos doadores leva em conta critérios como obesidade, viagem a lugares exóticos, ingestão de antibióticos nos últimos seis meses, ter tatuagens recentes e, obviamente, a existência de alguma doença infecciosa. Se a pessoa corresponder aos requisitos, é submetida a exames de sangue e fezes para checar a existência de agentes patogênicos ou parasitas. Uma vez aceita, não precisará seguir uma dieta especial e receberá em média US$ 40 por amostra doada.
Principal alvo
A principal razão para a criação do banco de fezes é a bactéria Clostridium difficile, que afeta meio milhão de pessoas a cada ano e mata cerca de 15.000, apenas nos EUA. Se qualquer fator quebrar o equilíbrio microbiano do intestino — a ingestão descontrolada de antibióticos, por exemplo —, há o risco da proliferação desse micro-organismo mais resistente aos medicamentos.
Nesse caso, uma segunda rodada de antibióticos normalmente limpa a infecção em 80%. Às vezes, porém, as bactérias sobrevivem, levando os pacientes a infecções maiores, além de dor e diarreia constantes. No caso da C. Difficile, o transplante de fezes pode resolver o problema em 94% dos casos, sendo necessária apenas uma sessão.
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