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Brumadinho: a lama, o silêncio e outras palavras

“Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade. Os desejos agora são recordações...” Italo Calvino, As Cidades Invisíveis.

Brumadinho está entre nós há anos: como presságio, como tragédia e, por fim, como esquecimento negligente. Uma lástima não olharmos, com atenção profunda e com necessária postura reformadora, para o eterno trinômio que acompanha a alma brasileira. Em Brumadinho, estava a certidão de nascimento, na lama, desta terra brasilis, alheia a planejamentos estratégicos e a seriedade fiscalizatória mergulhada numa burocracia enigmática e infindável. Nós somos o nosso próprio labirinto verde e amarelo.

Será que precisamos de um novo oráculo para decifrar tudo isso, revelando luzes para o túnel existencial sombrio dos descaminhos brasileiros? Não creio... ler e interpretar as mensagens mineiras de presságio, tragédia e esquecimento não requerem exercício filosófico intenso – basta agir de forma diferenciada. Herança é sangue e alma e corre no imaginário coletivo; é força reversa às transformações que estamos vivenciando, atualmente. Precisamos de um Quixote tropical redefinido. Contudo, o ritmo é lento e a persistência é necessária na terra em transe. Até a conclusão do ciclo completo das mudanças no horizonte, repetimos a labuta, tal qual Sísifo: ignorar o presságio, relativizar a tragédia e esquecer tudo novamente até a chegada do próximo carnaval. 

Essa tragédia lembra muito a obra clássica do Prêmio Nobel de Literatura de 1982, o saudoso colombiano Gabo (Gabriel García Márquez) com sua Crônica de uma Morte Anunciada, publicada no início dos anos oitenta. Nesta obra, temos presságios que nos passam despercebidos e que de nada servem como alertas, tal qual com o protagonista assassinado na obra de Márquez: “Santiago Nasar também não reconheceu o presságio. Dormira pouco e mal, sem despir a roupa, e acordou com dores de cabeça e com um sedimento de estribo de cobre na boca, e interpretou-os como estragos naturais da farra de casamento que se tinha prolongado até depois da meia-noite...”.

A fatalidade nos torna invisíveis diante da lama ao caos e diante do caos à lama que invade, sufoca e mata. Seria Brumadinho um Recife dos mangues às avessas? Possivelmente... Não há nada de poético, porém, no lamaçal de rejeito de ferro, misturado ao rio selvagem de barro mortífero que invadiu Brumadinho na hora do almoço; não há nada de antropofagia oswaldiana nas minas gerais de dor e perda humana e material. É hora, desta forma, de repensar processos, rotinas – é hora de aproximar a área internacional com suas experiências exitosas no campo da prevenção, da fiscalização eficaz e de punição na forma da lei para nossos trópicos. E é urgente. 

Percebemos que, infelizmente, a fatalidade crítica, tem nos tornado invisíveis (ou insensíveis?), tal qual revela trechos do conjunto de fábulas surreais de Italo Calvino com seu clássico As Cidades Invisíveis, como citado acima. Assim, Brumadinho tem muito de debates internacionais e de respostas coletivas na área internacional. Há uma intersecção entre a cidade e o mundo, unidos pela lama do descaso neste vale da sombra e da morte. Talvez, essa cidade mineira represente um microcosmo das angústias vivenciadas pelo mundo afora. Na chave deste enigma, está a cooperação solidária internacional, não somente exercida, com maestria por Israel, que enviou especialistas nas buscas e socorro, mas também pelo papel essencial que a Cruz Vermelha tem desempenhado.

Neste sentido, apenas há torpor e paralisia. Há silêncio retumbante que exprime milhares de palavras represadas; há socos e murros que vão longe e atingem não somente a alma humana, mas, sobretudo, alcançam a esfera internacional, desejando ter acolhimento sonoro de respostas e tentativa de paz. Calo-me.

* Doutor em Ciência Política. Coordenador do Curso de Ciência Política da UNICAP. Cônsul de Malta e Presidente da Sociedade Consular de Pernambuco.

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