Relações internacionais
Triste aniversário
Por: Thales Castro
Publicado em: 10/04/2019 07:40
Aniversários, geralmente, nos trazem alegria e celebrações. Essas datas importantes revelam o valor da vida e têm o poder de promover união e congraçamento com amigos e familiares. Existem, contudo, aniversários que só nos trazem dor, angústia e perdas e que estão imbuídos do instinto de morte – ou melhor do thanatos, como dizia o psicanalista Freud.
Esse é caso do aniversário de 25 anos do terrível genocídio em Ruanda, país de 26 mil Km2 de colonização belga na região africana dos Grandes Lagos, que se torna independente em 1962. O primeiro quarto de século desse massacre ignominioso em nada merece ser chamado de “jubileu de prata”; pelo contrário, deve ser lembrado como luto pelos 800 mil mortos a tiros, machadadas e foiçadas num ritmo frenético (fordista) de morte à minoria tutsie pelos rivais hutus. Ademais, apenas serve como alerta para toda a comunidade internacional dos perigos existentes na incapacidade de gestão estatal e na falência da tolerância diante das diferenças étnicas existentes neste pequeno país.
Tentaremos contextualizar, brevemente, esse país africano a partir de sua herança sócio-histórico-política, diante das razões de seu estrangulamento econômico e das motivações da rivalidade étnica que acabaram culminando com a falência completa do aparato estatal de Ruanda, gerando o genocídio de abril a julho de 1994. Por isso, Ruanda foi, durante muito tempo, classificada como um failed state – Estado falido, não no sentido econômico do termo, mas sim na percepção que a estrutura orgânica estatal fracassou, brutalmente, em não ter conseguido: (1) manter a ordem pública, (2) preservar a paz social e, por fim, (3) preservar a dignidade da pessoa humana sob a égide dos direitos humanos, consagrados internacionalmente.
Para compreender tal situação, deveremos começar, pois, pelo olhar social e histórico-político. Neste item, não podemos esquecer o legado do colonialismo em terras africanas, originado na Partilha da África da Conferência de Berlim de 1885. Nesta reunião, as potências europeias decidiram, simples e arbitrariamente, fatiar e conquistar o imenso e rico continente africano por meio da cobiça do imperialismo. Não se levou em consideração o desenho geopolítico das fronteiras nacionais, a identidade étnico-tribal dos povos, a herança cultural-linguística e as formações locais e religiosas das nações africanas. Com o processo de descolonização afroasiático dos anos 50 e 60, temos o surgimento de novos países sem sustentabilidade econômica com instabilidade política e profundas rivalidades étnicas. Esses países utilizaram o mimetismo de reprodução de sistemas de governos metropolitanos europeus, revelando o agudo desencaixe político-estrutural entre os países africanos, seus povos e suas matrizes religiosas locais. Com Ruanda, não foi nada diferente. Talvez, este seja o caso mais emblemático destas consequências calamitosas pós-colonialistas.
No campo do estrangulamento econômico, não podemos esquecer que o principal produto de exportação deste país era o café, arcando com quase metade de todo o PIB nacional. Observa-se que os preços mundiais do café despencam em finais de 1989, gerando pressão sobre o governo com perda de quase 40% da renda nacional. Tal fator aliado à rivalidade étnica entre hutus e tutsies vai se tornando insuportável já em 1993, quando ocorreu o Acordo de Arusha, numa clara tentativa de apaziguar o país diante da crise econômica, política e social. Após a queda do avião transportando o presidente Juvenal de Habyarimana em 7 de abril, que trouxe sua morte trágica, os hutus culparam os tutsies pela trama de sabotagem. Eis que, então, estava preparado o terreno de assassinatos sistemáticos. O mundo ficou atônito aos atos de selvageria que, em grande medida, eram encorajados por agentes do próprio Estado nacional.
O genocídio durou pouco mais de três meses e a contabilidade de mortos pode ter chegado até um milhão. As estatísticas demográficas apresentam uma baixa substancial em 1994 e 1995 em razão deste massacre. O país teve, então, de promover amplo diálogo nacional, no sentido de reconciliação entre as clivagens étnicas hutus e tutsies, para evitar, no futuro, novas tragédias de tamanha magnitude.
A resposta da comunidade internacional veio de duas maneiras: criação de uma robusta operação de paz e de “State Building” pós-genocídio e a criação de um tribunal penal internacional contra os crimes cometidos em Ruanda. Esse tribunal foi determinado por meio da resolução do Conselho de Segurança número 955 de novembro de 1994. Esse tribunal, cuja sigla em inglês é ICTR, continua ativo hoje e busca ainda apurar a responsabilidade política e criminal de tamanhos atos de assassinato em massa. Até o presente momento, o ICTR indiciou cerca de 93 pessoas responsáveis pelo genocídio e ainda está em busca dos tantos criminosos de guerra que planejaram tais atos.
Ruanda ainda ecoa na memória, nos olhos e nos ouvidos dos povos africanos e do mundo, em geral. Jamais poderemos esquecer as lágrimas de Ruanda – e muito menos seu genocídio de abril a julho daquele 1994. Que nossas ações, baseadas no princípio da convivência fraterna do direito internacional, possam apoiar a integração social e a paz, restaurando a dignidade mínima diante do eterno contraditório do tecido humano.