A Pesquisa Nacional sobre estudantes LGBTQIA e o Ambiente Escolar realizada em 2015 (mais recente) mostrou que 73% dos jovens entre 12 e 21 anos identificados como LGBTQIA foram agredidos verbalmente nas escolas por conta da orientação sexual, sendo o maior índice entre os cinco países que participaram do estudo.
Seguindo o princípio da liberdade, autoconhecimento, aceitação e inclusão, a rede pública de ensino de Pernambuco trabalha com Grupos de Pesquisa de Prática Pedagógica de Gênero nas escolas distribuídas nas 16 Gerências de Educação do Estado. Como bem explicou a gestora de Educação Inclusiva e Direitos Humanos Vera Braga, equipes que trabalham com gênero e sexualidade se reúnem nas escolas e montam um grupo de pesquisa com os estudantes, que é liderado por dois professores. "O trabalho é com rodas de diálogos sobre gênero, enfrentamento à LGBTfobia, violência contra mulher, importância da identidade de gênero. Os grupos também têm parcerias com universidades, ONGs, que trabalham com gênero e sexualidade. Também temos o projeto Andanças, os estudantes fazem vídeos nos celulares com alguma atividade na direção de gênero e sexualidade para garantir os direitos de todos os estudantes serem respeitados a partir da identidade de gênero". Braga falou que o trabalho também é feito com os docentes através de uma formação continuada, que acontece com encontros com palestras e debates - que passaram a ser feitos por plataformas digitais por conta da Covid-19 - sobre temáticas de gênero, sexualidade e racismo.
Professora de história do Ginásio Pernambucano (GP) e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da escola, Gabriela Borba, especificou que o grupo é um subprograma da Secretaria da Mulher em parceria com a Secretaria de Educação com o objetivo de reduzir a violência nas escolas, além de proporcionar um lugar seguro para discutir temáticas que ainda são consideradas tabus pela sociedade. "O projeto é autônomo de cada núcleo e atende as necessidades do público estudantil. No GP, os estudantes sentem necessidade de discutir temáticas atuais. Utilizamos twitter como fonte dos assuntos semanais ou algum que esteja em discussão na sociedade. Agora, estamos dialogando o marco das terras indígenas. Também utilizamos o texto base com linguagens simples, como a série de 'Feminismos Plurais', ou os da bell hooks, Ailton Krenak, Chimamanda Adichie, sem falar de Paulo Freire. Realizamos Tertúlias Dialógicas, método mais comum nos núcleos e o que mais gosto de trabalhar, porque os coloca para debater sem a minha intervenção".
O Núcleo do Ginásio Pernambucano trabalha em parceria com o programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) da Universidade Católica de Pernambuco. Os bolsistas e voluntários, segundo Gabriela, desenvolvem projetos de ensino que abordam as metodologias inovadoras.
No GP, a disciplina é colocada como eletiva para os estudantes como uma maneira de aprofundar os temas com os mais interessados no assunto. "Sou professora de história e dependendo do ano letivo, também atuo como professora de sociologia. Abordo esses temas dentro do conteúdo das minhas aulas curriculares. Preciso salientar que não faço nada fora do permitido, o Governo do Estado me dá liberdade de cátedra e minhas aulas são todas embasadas nos Parâmetros Curriculares de Pernambuco e, no caso do vestibular, os descritores do Enem", explicitou Gabriela.
De acordo com a coordenadora, o conservadorismo e resmungos de alguns alunos não a impede de passar o conteúdo. "Quando a situação não se resolve em sala de aula levamos até a coordenação, que faz a mediação com a família e estudante". Das poucas vezes que precisou usar a mediação, Borba descreveu ter sido uma "quebra de gelo inicial", e que mostrou que o diálogo é fundamental. "A mediação foi necessária por ele se recusar a dialogar no começo. Quando isso acontece prejudica a aprendizagem do estudante. Um educador precisa entender que mesmo que parar uma aula e ir com um estudante atrás de uma mediação não é perda de tempo e sim, ganho".
Estudante do 3º ano do Ginásio Pernambucano, Fábio Matheus fez parte do núcleo e ressaltou ter sido de muita importância na sua vida, que o ajudou nas questões com a sua identidade de gênero. "Foi importante para mim porque trabalha auxiliando a gente a desbravar a nossa identidade, saber quem nós somos e me ajudou muito a entender quem eu sou, qual a minha importância dentro da sociedade. Estou inserido dentro da causa LGBTQIA . O Núcleo é essencial porque nos aproxima de assuntos importantes, como gênero e sexualidade. Às vezes até brinco que ele deveria ser uma matéria, não uma eletiva, devido a grande importância que teve para mim. O estudo de gênero avança junto com a nossa sociedade, ele vai mudando ao longo do tempo. É importante entender como funciona, como nos afeta, qual é a nossa responsabilidade social", relatou.
A estudante Ana Andrade do 2º ano também fez parte da eletiva e reforçou ser um espaço seguro, onde se discutem temas considerados tabus na sociedade. "Homofobia, machismo, racismo e xenofobia, eram temas discutidos nas reuniões. Desde o início, me empolguei com os assuntos abordados, e como sempre gostei de falar, me deixava levar, ouvir e dar minha visão sobre o assunto. Aprendi a ouvir mais e me aprofundar em assuntos que pensava que já sabia. As discussões nos ajudam a formar o nosso pensamento, a enxergar o mundo de outra forma, usando livros, filmes, séries, reportagens e posts de redes sociais como material de apoio. Quando a escola adota o Núcleo como eletiva, ela abre mais portas para o futuro do aluno", frisou.
Rede Municipal
De acordo com Regina, a formação faz parte da matriz curricular que fala de sexualidade, prevenção à violência, respeito às diferenças e diversidade desde a educação infantil. "Os professores desde a educação infantil e EJA recebem a formação periódica contínua desses temas. As avaliações do trabalho são sempre positivas, porque o que as escolas precisam é que haja uma grande mudança nessa questão da sexualidade e como ela está se apresentando na escola. Se antes havia o movimento da população LGBTQIA passar despercebida dentro da escola, estar dentro do armário, de um receio de afirmar essas identidades. Hoje, o que ocorre é ao contrário: essas pessoas estão cada vez mais assumindo suas identidades sexuais e exercendo autonomia. Não seguem mais a heteronormatividade e os modelos tradicionais previsíveis, os estudantes estão cada vez mais reivindicando seu direito, o que vai mudando os discursos que há 10 anos não tínhamos".
Gouveia salientou que à medida que a sociedade vai se modificando, a violação de direitos também vai. "Hoje não se consegue mais exigir que as pessoas permaneçam no armário, eles estão cada vez mais abertos. Outros debates surgem com o tempo, como hoje surgiu o da linguagem inclusiva, que ela nunca será neutra. Assim como o uso do banheiro por estudantes transexuais, nome social, que às vezes surgem ocorrências de negação dentro da escola e nos é comunicado para fazer um trabalho e essas tensões e conflitos sejam resolvidas".
"Outra mudança que a gente tem percebido entre os docentes é descolar desse discurso ideal, inconsistente e anacrônico de estabelecer essa dicotomia entre coisas de homem e mulher, de menino e menina. Esse discurso está sendo superado porque existem escolhas, cores, lugares, profissões, brinquedos, e essas coisas não estão determinadas pelo sexo biológico, e sim pelo interesse, liberdade de escolha de cada pessoa. O debate está posto, essas pessoas existem e cada vez mais vão ocupar espaços. A frase 'o medo não pode vencer a liberdade' da música de Criolo é muito boa. As pessoas estão resistindo e têm todo o direito de existir, construir essa educação que é direito de todos", pugnou.
Professor da rede municipal, Josinaldo Bernardo dá aula para crianças de 6 a 9 anos e contou ter trabalhado com um estudo de biografias de mulheres com alunos do 3º ano infantil. "Estudamos 15 biografias de mulheres e na medida que as crianças foram conhecendo as histórias delas, questões de violência, violência e desigualdade de gênero, a gente evidenciou que lugar de mulher é onde ela quiser. No cotidiano de sala de aula sempre tento trabalhar numa perspectiva mais inclusiva de que não existe brincadeira de menino e menina, existe brincadeira e todo mundo pode utilizar desses mesmos espaços e objetos sem ferir a sua integridade e sexualidade. Evidentemente a gente não fala sobre sexo com as crianças, tem que respeitar os tempos e o próprio processo de amadurecimento delas e das perguntas. Nas aulas de ciências, por exemplo, sempre falo do cuidado que se deve ter em relação ao outro, de falar a alguém de confiança caso toquem nas suas partes íntimas".
"Vai surgindo naturalmente no contexto de descoberta das crianças, que não é só na alfabetização, mas vem da educação infantil, da creche, e fica muito mais evidente e polêmico quando trata da adolescência e pré-adolescência. Com crianças a gente trabalha na perspectiva do gênero, desigualdade, diversidade, respeito às diversidades. Mas tudo isso é fruto de um processo de formação dos professores e da abertura, porque tem muitos professores que não têm a abertura ou a sensibilidade, ou não se sentem preparados para trabalhar determinadas temáticas de forma tranquila e naturalizada em sala de aula", observou.
Até a publicação desta matéria a reportagem do DP não recebeu retorno da Secretaria de Educação do Recife.