Selênio vive!

Og Marques Fernandes
Ministro do STJ e ex-repórter do Diario de Pernambuco

Publicado em: 18/05/2021 03:00 Atualizado em: 18/05/2021 05:13

Faz cinco anos que ele se encantou. O pai era juiz e decidiu colocar nos filhos o nome dos elementos químicos. Selênio Homem de Siqueira era um antioxidante humano, a reduzir os radicais livres e os temperamentos ácidos com mansidão e amizade, no ambiente do Diario de Pernambuco, (assim, sem acento, na grafia original). Conviver com ele, na década de 1970, fazia bem à saúde.

Época risonha. O superintendente da empresa era o jornalista Antônio Camelo da Costa, o dr. Camelo, que consagrou a vida aos Diários Associados. O respeito pela liderança entre os colegas não impediu que um gaiato da redação rabiscasse na porta do banheiro masculino: “Este jornal é um deserto. Só quem sobrevive é Camelo”.  

Nascido em 24 de maio de 1935, em Santa Luzia do Sabugy, o paraibano Selênio veio para o Recife em 1947. Formou-se em Economia, mas nunca exerceu a profissão. Quem não o conhecesse, discreto como um frade, envolvido pela fumaça do cigarro, a matraquear a máquina de datilografia pé duro, invariavelmente de calças jeans e camisa sem gola, mal imaginava estar diante de um dos maiores talentos da palavra que o jornalismo pernambucano produziu.

Naquela fábrica de algazarra que era a redação, havia a cultura interna de que os jornalistas mais antigos escolhiam os melhores lugares para trabalhar. Um chegou a colocar corrente e cadeado na máquina de datilografia, símbolo de ocupação de um território que a ninguém era dado o direito de invadir. Selênio não participava dessas pequenas servidões.   

Gostaria de esconder-me no ontem. Eu ainda o veria ali. Magro, de estatura mediana, costeletas que lhe encompridava o rosto alvo que era facilmente enrubescido pela timidez excessiva. Chegava cedo no trabalho e ocupava um birô no fundo do salão, lugar afeito aos mais inibidos. Exerceu a chefia de reportagem e editorias diversas, mas o xodó de Selênio era a crônica que escrevia para a edição de um caderno dominical.

Naquela página exorcizava todos os sentimentos. O jornal era aguardado por muitos leitores porque era o dia da crônica do mago da palavra. Ele enxergava uma bela história onde o comum dos mortais quedava-se no nada. Compreendia a vida com lirismo e sensibilidade. Falava do cotidiano, de Olinda, de amores platônicos, do meio ambiente.

Tinha a palavra de apoio e o gesto de colaboração com os colegas pela razão única de ser fraterno. Mas havia um Selênio capaz de produzir tiradas de humor e ironia como poucos. Certa ocasião, foi convidado para uma festa de carnaval oferecida por um professor de teorias estrambóticas que frequentava quase todo dia a mesa do jornalista.

Selênio levou a sério a produção para o evento. Contratou um carro funerário com caixão e assim foi conduzido à residência do anfitrião. Como era de se esperar, a mulher do professor não achou graça naquela pantomima: um ataúde com Selênio entrando pelo portão. O negro carro funerário de decoração barroca estacionado na calçada da residência. Para o constrangimento do dono da casa, a festa acabou sem ter começado.

A timidez imensa, absoluta, insuperável do jornalista não permitiu que exercesse a arte da conquista, mas ele compensava a solteirice com visitas aos bares e inferninhos no bairro do Recife. Era um boêmio que se soltava num papo viciante, embora incapaz de dizer algo corrosivo contra alguém. Sentia-se à vontade no lugar. Com os amigos de copo, traçava cervejas cujo efeito era deixar o rosto mais vermelho. Segundo me conta um companheiro de jornadas noturnas, seu bem-estar junto ao mulherio devia-se ao ambiente que dispensava a etapa inibitória da conquista.

Imagino-o num daqueles cabarés. Por coincidência ou ironia, o cantor ataca um tango de Anísio Silva como se falasse com a alma do jornalista: - Não digo o nome de quem amo/ De quem eu gosto nunca falo/ Ninguém escuta quando eu chamo/ é por isso que me calo/Não digo o nome de quem sabe/ que dia a dia fico louco/ alguém deseja que eu me acabe/que eu morra pouco a pouco.

Quando o tempo era curto, tomava umas e outras nos bares das ruas próximas da sede do jornal. Voltava para o serviço a esfregar as mãos, que passava insistentemente sobre a cabeça, mantendo a tranquilidade dos quase sóbrios. No livro Nomes Próprios Poucos Comuns, o prof. Mário Souto Maior inscreveu o cronista no rol dessas raridades. Hoje, revendo o querido repórter pela transversal do tempo das poucas fotos na internet, um plácido rosto contemplando o dedilhar talvez da crônica do domingo, ainda consigo absorver a serenidade do homem de qualidades tão raras quanto o nome de batismo. Não sei se algum coleguinha daquele tempo chegou a lhe dizer. Presto-lhe um saudoso tributo: tudo o que desejávamos era escrever tão bem quanto Selênio. Ele vive em cada um de nós

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