A perspectiva da paternidade em um estupro

Flávio Domingues
Advogado

Publicado em: 20/06/2024 03:00 Atualizado em: 19/06/2024 23:41

Não pensem os defensores do PL1904 que isso é um debate fácil. Ele nos leva a refletir sobre uma consequência direta dela, a paternidade, direito fundamental assegurado a pais e filhos. Aquilo que se mostra elogioso, recuperar o vínculo de uma origem paterna, também permite o estabelecimento de vínculo legal entre o pai e o fruto do estupro. No Brasil, este direito encontra respaldo legal no Código Civil que garante aos filhos e aos pais o direito de conhecer sua ascendência ou descendência. Quantas vezes não vimos na TV o teste de DNA confirmando uma paternidade de forma sensacionalista? Aquilo gera direitos e deveres a mãe, ao reconhecido pai e ao próprio descendente. O direito da paternidade se torna mais complexo quando o contexto envolve questões como o aborto e mais ainda quando pensamos na proposta do PL.

O debate sobre o aborto e suas implicações legais têm gerado intensas discussões, especialmente após a aprovação da urgência do Projeto de Lei nº 1904/2024. Este PL propõe alterações no Código Penal Brasileiro tipificando o crime para mulheres que interromperem a gestação – mesmo em casos de gravidez resultante de estupro – a partir da “viabilidade fetal”, presumida em gestações acima de 22 semanas (Art. 2º, §1º). A proposta tem sido alvo de críticas por parte de grupos que defendem os direitos reprodutivos da mulher argumentando que a criminalização do aborto coloca em risco a saúde e a vida das vítimas, mulheres e crianças, além de ser ineficaz na contenção da prática do estupro.

Mas quero fixar o debate em um ponto que está sendo pouco debatido. Reside na consequente possibilidade de um estuprador ter direitos sobre a criança gerada a partir da violência sexual. Falamos da paternidade e da reivindicação de direitos como pensão alimentícia e herança, em caso de falecimento do(a) filho(a).  O PL, ao considerar o aborto crime equivalente ao homicídio simples (Art. 3º, Parágrafo único; Art. 4º, §2º; Art. 5º, Parágrafo único), força o acontecimento do fato jurídico que é o precedente legal necessário para que o agressor adquira o direito de reivindicar a paternidade e possa ter direitos sobre o fruto do estupro. Essa perspectiva gera uma preocupação, pois pode possibilitar uma premiação ao estuprador. É contrassenso? É perverso? Mas tem-se que pensar em todas as consequências de uma alteração legislativa.

A aprovação do Projeto ignora os direitos reprodutivos das mulheres e agrava a vulnerabilidade das vítimas, sejam elas de baixa renda, de classe média e ou mulheres ricas, mas estas podem resolver esse problema em países que permitem o aborto, fato que não será nem conhecido pela justiça no Brasil. Já para uma menina pobre, a impossibilidade de interromper uma gravidez indesejada pode resultar em um filho com risco de abandono, como já ocorre com cerca de 70.000 crianças que vivem nas ruas do Brasil. Pior para as pessoas de classe média que lutaram arduamente para conquistar um patrimônio.

Isso pode soar como terror, mas quando virem a possibilidade de um estuprador reivindicar direitos sobre a criança gerada a partir da violência sexual, incluindo a herança e a pensão, soará pior. Tal legislação perpetuaria a injustiça e a impunidade, colocando em risco a saúde mental, a segurança e o futuro de inúmeras mulheres e crianças. Tudo isso reforça a necessidade de um debate mais humanizado e sensível às realidades sociais e econômicas do país, o que não se consegue com uma aprovação em regime de urgência em 23 segundos por ilustres deputados.

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