De manias e de doenças

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 29/06/2024 03:00 Atualizado em: 29/06/2024 08:10

Há um desencontro entre o relógio do veículo com a realidade, esta com vinte minutos a frente do que lá está marcado. Diferentemente do rádio-digital, a assinalar a hora com dez a quinze minutos de antecedência. Ambos me atrapalham, quando me distraio. O primeiro me dá a sensação de que estou chegando antes do tempo certo. O segundo, já me fez sair da cama antes da hora devida, só percebendo quando me deparo com o relógio da cozinha, que nem corre nem atrasa, merecedor de minha total e absoluta confiança. Teria o meu voto se fosse candidato.  

O problema não está nesse ou naquele relógio. Está em mim, na obsessão pelo horário, mesmo que não tenha nenhum compromisso. Não adianta evitar de olhar o relógio do pulso. A curiosidade é maior e uma força superior me impele a lançar os olhos no marcador. Contudo, não é mania roubada, apenas herdada do meu avô paterno, Zeca de Cícero, que governava uns dez relógios de corda, e, não satisfeito, ainda perguntava as horas a todo mundo. Bosco, que viveu sete anos em sua casa, cansado de ser interrompido enquanto estudava, uma vez, explodiu. O velho se machucou, não lhe perguntando mais as horas, embora sentisse saudade do neto nas suas férias.

O hábito veio no sangue, botando a cabeça fora da janela aos poucos. Nenhum filho herdou, que eu saiba (já devo ter assim dito), herança caída em minhas mãos, mero neto, em meio de tantos, que, ao nascer, não era mais novidade. A penca já era grande. Contudo, não fica só aí. Do lado materno, a herança também despontou, agora de vovó Lilia, estenose em esôfago superior, coitada dela que viveu vinte e um anos só tomando sopa, o alimento sólido sem passar em sua garganta, época terrível em que a medicina não sabia qual a solução, vovó passando a tomar sopa de manhã, meio dia e a noite, não se dando ao luxo de sentar na mesa, ao lado de todos, solitária na cozinha, onde sorvia seu caldo, situação que vi nos seus últimos nove anos em que morei em sua casa, em Aracaju. De minha parte, tempos mais adiantados, me preparo para uma cirurgia em breve, alguns exames ainda a fazer, doido para poder mastigar o alimento sem receio de engasgo, que ocorre até em diminutos comprimidos.  Fico assim pulando fogueira até que a estenose seja uma etapa vencida, sonhando com lei que proíba os avós transmitir manias e doenças aos netos.

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