Divagações sobre as torturas dos tempos do primário

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 22/06/2024 03:00 Atualizado em: 22/06/2024 06:48

A palmatória era a arma mais diabólica, no meu tempo, no primário, a assombrar os alunos só  em vê-la estendida num canto, no meio de cadernos, na mesa da professora. Qualquer deslize, na sabatina, no comportamento, e em geral, a palmatória queimava na mão, ora em uma, ora em outra, a professora comprimindo os dedos da vítima, digo, do aluno, para baixo, a fim da palma da mão ficar bem esticada, e tome bolo numa mão, bolo em outra, o aluno sem pausa, no mínimo quatro bolos, a palma da mão ardendo com a pancadaria, a vergonha de estar toda a escola a assistir a cena, o silêncio que recaia depois, ninguém tendo coragem de tocar no assunto na saída nem em lugar nenhum, o que dava a entender se tratar de um castigo humilhante.

Não ficava só na palmatória. Outros castigos figuravam no diabólico cardápio. Ficar de joelho, o chão marcado por areia que os sapatos carregavam, uma Crestomatia em cada mão, abertas as duas, numa imitação do Cristo na cruz, num equilíbrio que, não fosse respeitado, aumentaria o tempo ali ajoelhado. Tudo isso vinha de longas décadas. Eu vi e vivi.

Mas havia outra tortura, que nunca encontrei uma explicação, aplicada ao canhoto. Uma tia, canhota, se viu obrigada a aprender a escrever com a mão direita. Em algumas escolas – eu soube, por ouvir dizer -, muitas vezes, a mão esquerda era amarrada, para forçar o aluno a usar a mão direita. Tive uma assessora canhota que usava as duas mãos, compelida a se utilizar da direita nos seus tempos de aluna do primário. Ao que me vinha à mente, escrever com a mão esquerda se assemelhava a um grave pecado que era preciso evitar/corrigir enquanto ainda era factível.

Uma vez, posse de diretoria do Tribunal de Justiça de Sergipe, um fato me chamou à atenção: todos os três empossados eram canhotos, achando interessante a maneira de pegar na caneta, no movimento diferente que a esquerda faz, o braço ficando afastado do livro, a mão esquerda a burilar a assinatura, parecendo braço de radiola, enquanto, quem não é canhoto, a mão se apoia no livro. A memória regurgitou fatos lá atrás no curso primário. De consolo o mundo novo que o ginásio oferecia: recreio depois de cada aula, não existia palmatória, nem o canhoto sofria perseguição. Ainda bem que eu não era canhoto, o anjo de guarda deve ter me cochichado.

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