O que nos dizem os olhos de um robô?

Rodrigo de Abreu Pinto
Filósofo, Advogado e Diretor de Inovação da Câmara de Comércio Brasil-Portugal

Publicado em: 21/06/2024 03:00 Atualizado em: 21/06/2024 06:31

A OpenAI recém-apresentou a nova versão do ChatGPT. A live de apresentação deixou os espectadores boquiabertos pela afinidade entre humano e máquina enquanto conversavam entre si.

As versões anteriores já impressionavam pelas habilidades de compreensão e geração de texto. A principal novidade do novo ChatGPT-4o é a compreensão de imagem e áudio do usuário em tempo real, com a geração de respostas em uma voz humana, demasiadamente humana.

É verdade que IAs com assistentes de voz já existem há algum tempo. A sensação de que estamos diante de algo radicalmente novo é porque o ChatGPT-4o, ao contrário da Alexa (Amazon) e da Siri (Apple), interage de modo muito realista.

Os avanços feitos pela OpenAI ocorreram em duas direções. De um lado, uma melhor compreensão das mensagens recebidas (inputs), incluindo a análise das emoções nas vozes e expressões faciais dos usuários. De outro lado, uma maior qualidade das respostas fornecidas (outputs), com a modulação do tom de voz de acordo com o conteúdo da mensagem, e sem o delay de 2 ou 3 segundos antes de cada resposta que emperrava os diálogos das IAs existentes.

A grande surpresa é porque a história da OpenIA, ao menos até então, ia na contramão da simulação de comportamentos humanos. Com base em sua missão de desenvolver IA de forma segura e benéfica para a humanidade, a OpenAI prezava pela distinção das interações de humanos e máquina. O que explica a escolha de um nome técnico para a sua IA, e não o nome de uma pessoa, ao contrário das tecnologias de Amazon e Apple.

Mais recentemente, a OpenAI passou por profundas modificações na esteira do ingresso de investidores do porte da Microsoft. Uma virada de mesa resultou na demissão dos membros do conselho de administração que externavam maiores preocupações quanto aos riscos no desenvolvimento das IAs, incluindo um de seus fundadores, Ilya Sutskever.

Só que o diferencial do recém-lançado ChatGPT-4o é de outra natureza. Por mais que o Gemini seja tão inteligente quanto, não é sexy da mesma forma. Em lugar das interações planas e impessoais, a OpenAI apresentou uma IA que transmite a sensação de intimidade pela voz cativante com que responde, flerta, conta piadas e satisfaz os desejos dos usuários.

O lançamento do ChatGPT-4o quiçá representa o momento em que o campo de batalha das big techs se desloca da mera inteligência para a intimidade. A partir de então, as IAs competem em relação aos humanos não só em tarefas gerais, mas também íntimas e sensíveis, como se feitas sob medida para uma era caracterizada pela solidão crescente.

De acordo com dados recentes da Gallup, 24% da população mundial se declara muito ou razoavelmente solitária. Os entrevistados não esclarecem se a solidão é positiva ou negativa, desejada ou forçada. Mas embora possa estar associada a aspectos positivos como privacidade, liberdade e independência, a solidão inevitavelmente resulta na privação de intimidade com pessoas em quem confiamos.

É nesse contexto que a intimidade é transformada em commodity - não qualquer intimidade, mas uma sem riscos, isenta de discordâncias e disponível a qualquer momento, justamente a intimidade que pode ser oferecida pelas IAs. Razão pela qual a OpenAI canalizou os seus esforços para uma tecnologia que satisfaz as demandas de consumo de pessoas que vivem e/ou fazem atividades sozinhas.

Em muitos desses casos, a solidão é uma defesa contra as incertezas que caracterizam as relações interpessoais – afinal, ao contrário de uma máquina adestrada para ser gentil, sempre disponível e cujas respostas são baseadas em algoritmos e dados pré-programados, não há nada nas relações entre humanos que seja seguido à risca.

Relacionar-se com outro alguém não é mesmo fácil, só que o preço de substituir as interações humanas é ainda mais alto. A intimidade de que o solitário sente falta não é meramente suprida pelo chat com a IA, pois depende de elementos não-linguísticos ou visuais que permeiam a comunicação entre humanos, como a empatia, a intuição e as carícias. Se dependemos de outro humano para falar de si e se fazer entender, a antropomorfização comunicativa das IAs pode nos afastar ainda mais dos outros e de nós mesmos.

Ao menos por ora, há coisas mais importantes do que a corrida descontrolada para desenvolver IAs mais realistas. A inversão da solidão crescente depende do desenvolvimento de uma ética mais compreensiva, desde que baseada na incerteza partilhada a respeito do outro e de si mesmo. É preciso perder o medo do frio na barriga para acessar a verdade que só descobrimos ao olhar alguém nos olhos.

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