A extrema direita conseguirá desfigurar a democracia?

Maurício Rands
Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 08/07/2024 03:00 Atualizado em: 08/07/2024 08:12

Autocratas como Putin, Trump, Órban, Bolsonaro, Milei, Le Pen, Farage, Meloni, Bukele, e Duterte têm em comum o desprezo pelas instituições democráticas liberais. Constatam que essas instituições não têm dado conta dos anseios e valores dos segmentos mais vulneráveis. Diante da justa indignação da população contra a corrupção, passam a culpar a própria atividade política. Como se eles próprios não fossem políticos. Para combater a criminalidade, propõem as falsas soluções do populismo punitivista. Como se algumas dessas soluções não ameaçassem seus próprios direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao processo justo. Diante do incômodo do senso comum tradicionalista e conservador com o empoderamento das mulheres, negros e LGTBI, deduzem soluções autoritárias contrárias aos direitos de igualdade dessas pessoas. Como se suas famílias não tivessem membros dessas comunidades. Diante do apelo da “teologia da prosperidade” dos evangélicos neopentecostais, advogam a ampliação de benefícios tributários a pastores que se fazem multimilionários. Como se fossem legítimas essas fortunas construídas pela exploração da fé alheia. Diante da indignação contra o desemprego e os péssimos serviços públicos, deduzem promessas nacionalistas e racistas contra os estrangeiros que estariam roubando os empregos e inviabilizando o estado de bem-estar social. Como se essas promessas não atentassem contra os próprios valores democráticos e civilizatórios que dizem professar. Diante das necessidades de terra de plantadores e criadores, defendem as políticas da motosserra. Como se as mudanças climáticas não fossem uma realidade. Diante das políticas de isolamento nas epidemias, que são de execução problemática, sentem-se autorizados a negar as evidências científicas. Como se esse negacionismo não causasse tantas mortes. Diante de alguns exageros das causas identitárias, passam a defender a supressão de direitos e a reprodução da exclusão e da discriminação.

Esses autocratas e seus seguidores formam uma nova direita. Desenvolvem um ideário comum que é cimentado pela repulsa aos valores democráticos, liberais e sociais do Iluminismo. As instituições democráticas são percebidas como embaraços ao avanço de sua agenda. Em cada país, as ênfases são diferentes, embora se articulem em foros como a Conferência da Ação Política Conservadora (CPAC) que ora se realiza em Camboriú-SC com as presenças do presidente argentino Milei e do ex-presidente Bolsonaro. O discurso contra os imigrantes avulta com força na Europa porque eles estão à porta e o estado de bem-estar social não consegue se manter. Em países onde a criminalidade e a corrupção são altas, como Brasil, El Salvador e Filipinas, autocratas como Bolsonaro, Bukele e Duterte encontram forte receptividade para suas políticas linha-dura. Em países de alta desigualdade e onde o “establishement” se distanciou do homem comum, o apelo a um passado supostamente grandioso feito por Trump parece incontornável.

É preciso cautela com as generalizações. O que surge com a ascensão dessa nova direita é um cenário completamente diferente. Seu ideário é potencializado pelas ferramentas da internet e da inteligência artificial. Seus slogans, ataques e fake news são impulsionados pelas plataformas digitais cujos algoritmos favorecem o ultrajante, falso e discriminatório. Apesar desses avanços, não parece confirmada a hipótese de que existe uma onda irrefreável da nova direita. É verdade que, nas eleições de junho para o Parlamento Europeu, a extrema-direita conquistou 18% dos votos. Nas eleições britânicas de 04/07/24, o partido extremista de Nigel Farage obteve inusitados 17% dos votos. Também impressionam os 33% dos votos do partido de Marine Le Pen, o Reagrupamento Nacional, no 1º turno das eleições para a Assembleia Nacional francesa em 30/6/24. Nos EUA, Trump desponta como favorito mesmo depois de ter tentado fraudar as eleições de 2020 e ter incentivado a invasão ao Capitólio em 06/01/21.

Por outro lado, forças progressistas têm saído vitoriosas em eleições contra a direita. Como foi o caso de Biden em 2020, Olaf Scholz na Alemanha em 2021, Lula em 2022, Pedro Sánchez na Espanha em 2018 e 2023, Keir Starmer no Reino Unido em 04/07/24 e da Frente Popular de Esquerda na França em 7/4/24.

Quando essa direita extremada chega ao poder, geralmente com a adesão oportunista de parte da direita tradicional, nem sempre ela consegue desmontar as instituições democráticas. Mesmo que tente, como fizeram Bolsonaro e Trump. Mas a opinião pública, a sociedade civil e as próprias instituições conseguem impor-lhes freios. Como mostraram Marcus André Melo e Carlos Pereira no livro “Por que a democracia brasileira não morreu?” (2024). Em outras situações, como a Itália de Meloni, esses governos da nova direita atenuam algumas de suas propostas mais radicais. E, assim, arriscam-se a perder o apelo populista ou a se desgastar por não entregar as promessas inexequíveis. O que parece certo é que as sociedades ocidentais estão divididas diante de visões de mundo e projetos radicalmente distintos. Mesmo sem conseguir destruir as democracias, essa nova direita populista, autoritária e extremada parece ter vindo para ficar no cenário por muito tempo.

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