Cristina guerreira

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicado em: 19/07/2024 03:00 Atualizado em: 19/07/2024 05:12

Convidado para o I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, Jean Paul Sartre desembarcou no Recife em agosto de 1960. O sucesso da estadia em Cuba, os elogios à revolução cubana, estimularam o filósofo francês a estender seu périplo cultural pelo Brasil. Sartre era personalidade mundial. O existencialismo, a defesa da paz, a oposição à guerra colonialista na Argélia e os textos que escrevia com maestria, faziam de Sartre escritor bem sucedido e respeitado.

Convidado pelo Partidão Comunista para o Congresso, Sartre foi ciceroneado por Jorge Amado. Na primeira semana no Recife, concedeu entrevista à imprensa no Grande Hotel. A jovem repórter pernambucana Cristina Tavares Correa, era a única mulher presente. Trabalhava no Jornal do Commercio e fora escalada pelo diretor Esmaragdo Marroquim, por motivo prático:  Cristina era a única que falava francês.

Ao final, a entrevista rendeu pouco noticiário e muita de fofoca. Cristina teria despertado entusiasmo juvenil em Sartre. Machismo com sotaque francês e ambientação recifense. Boato.   Estrábico, enjoado, o francês deu toda atenção à jovem repórter e jogou muito do charme francês. Cristina atenciosa, ficou amiga do casal – Sartre/Simone de Beauvoir – que conheceria depois. Na França, a pernambucana fez várias visitas ao casal e sempre trocavam alguma correspondência.  

A escritora Claudine Monteil, autora daquela que é considerada a melhor biografia do casal francês, não faz nenhuma alusão nem a Cristina, nem à entrevista. Muito menos ao romance.

No início dos anos 1980, almocei com a já deputada Cristina Tavares, no nosso Restaurante D. Pedro e satisfiz antiga curiosidade pela entrevista com o francês famoso.  Naquela época eu ainda não trabalhava no jornal.  

Cristina não era bonita. Pelo contrário. A pele manchada, os dentes amarelados pela nicotina, os cabelos em desalinhos, ela não tinha um pingo de vaidade.  Era simpática, a voz rouca, a linguagem clara, inteligente. Cristina era suave e permaneceu solteira por toda a vida.  

Na escalada ao Recife, Sartre, andou muito, foi a um culto religioso africano, andou muito. Contudo, não há registro de Sartre perambulando pelo Savoy, muito menos hospedado no Hotel Central ou batendo pernas pelo Recife antigo. Sob a mira da polícia suas andanças , seus encontros suspeitos ficaram  registrados na vigilante  Secretaria ria de Segurança Pública. Sartre era comunista.

Da parte da nossa gente conservadora, havia restrições políticas ao francês.  Gilberto Freyre nem se dignou a recebê-lo. Muito menos a presenteá-lo com uma garrafa do famoso licor de pitanga.  Em 1946, Gilberto Freyre fora eleito deputado federal pelo PC, mas abominava o marxismo e tudo o que ele representava.  

Anos depois, já em 1970, Cristina Tavares insistia no Jornalismo e mantinha as antigas preocupações com a sobrevivência da democracia. Ela e outros poucos colegas estavam incomodados com a intolerância e a asquerosa violência nos quartéis. Na época, assessorando o governador Eraldo Gueiros, estranhei quando Cristina me convidou para encontro com dom Hélder Câmara, na casa dela. O motivo era a angústia de jornalistas com os desatinos do movimento militar. Vários colegas estavam sendo ameaçados. Dom Hélder apenas ouviu e recomendou cautela, prudência. Ele mesmo fora ofendido, agredido verbalmente inclusive no exterior, onde ia com frequência.

A guerreira Cristina não parou. Foi fazer jornalismo em Brasília e atraiu a atenção dos caciques do renovador PMD. Eleita deputada federal incentivada por Ulisses Guimarães, ganhou destaque como uma das principais personagens que atapetaram a volta de Arraes do exílio. O retorno pouco acrescentou à retomada democrática que parecia estar a caminho. Mas Arraes tinha seus próprios planos e neles não estavam incluídos Cristina, Fernando Mendonça, dra. Naíde Teodósio, Maurílio Ferreira Lima, Hugo Martins Guri, Germano e Norma Coelho fundadores do Movimento de Cultura Popular; lideranças estudantis e tantos outros que ficaram pelo caminho ou caíram assassinados.

Maria do Socorro Diógenes, está publicando o livro Amor, luta e luto no tempo da ditadura. Vale ser lido. Para que ninguém esqueça.

Cristina seguiu em busca dos seus sonhos, mas não foi reeleita. Arraes tinha voraz apetite por votos e pelo Poder.  Mesmo assim, Cristina seguiu lutando. Por muito pouco tempo. Seria diagnosticada com câncer. A luta agora era contra um inimigo ainda mais voraz e invisível. Solteira, sem filhos, a solidão batia à porta.

Depois daquele encontro com dom Hélder, lia o que ela escrevia e recebia regularmente seus trabalhos de combatente nacionalista na Câmara. No Início dos anos 1990, conversamos ao longo da praia, sempre caminhando lentamente pelo calçadão de Boa Viagem. A doença avançava. Ela foi buscar tratamento nos Estados Unidos. Em vão. Na última vez que a vi, Cristina embarcava em um carro particular. Acenou sem veemência.

Aquela luta Cristina também estava sendo perdida. Foi-se a última célula de uma guerreira pernambucana.

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