O STF contra o orçamento sequestrado e a democracia bloqueada

Maurício Rands
Advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 19/08/2024 03:00 Atualizado em: 19/08/2024 00:55

Em 2022, o governo federal gastou R$ 125 bilhões com investimentos e inversões financeiras (despesas de capital, exceto amortização da dívida pública). Cerca de 1,3% do PIB. Segundo o portal da transparência, em 2024, até agosto, foram empenhados R$ 37,681 bilhões com emendas parlamentares. Desse total, R$ 13,640 bilhões foram empenhados com “emendas individuais - transferências com finalidade definida”. Outros R$ 10,319 bilhões, com “emendas de comissão”. Mais R$ 7,682 bilhões, com “emendas individuais - transferências especiais”, as chamadas emendas pix. E mais R$ 6,038 bilhões, com emendas de bancada. Esse o tamanho do sequestro do orçamento federal pelos parlamentares. Eles estão decidindo a aplicação de 24,2% de toda a despesa discrionária que o governo pode usar para investimentos. Contra 2,4% nos EUA e menos de 2% em 24 países da OCDE. Assim usurpam o poder do Excutivo. A farra pipocou em 2020, quando o então presidente entregou-se ao esquema parlamentar do orçamento secreto. Naquele ano, o recorde das emendas empenhadas: R$ 37,540 bilhões. Até hoje não batido.

O orçamento secreto era viabilizado pelas emendas do relator do orçamento na comissão mista. Em 2022 tinham chegado a R$ 8,640 bilhões empenhados. Em dezembro de 2022, o STF proibiu o orçamento secreto. Aí os parlamentares contornaram a proibição através do aumento das emendas individuais com finalidade definida (que passaram de 29,07% para 36,20%), pelo aumento das emendas de comissão (que passaram a 27,39%) e pela criação das  emendas pix (20,39%).

Contra esse sequestro orçamentário, o PSOL ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7697 atacando a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares tanto individuais quanto de bancadas, que havia sido introduzida pelas emendas constitucionais nº 86/2015 (que criou a emenda impositiva), 100/2019 (que tornou impositivas também as emendas de bancadas estaduais), 105/2019 (que desvinculou as emendas de projetos ou atividades) e a 126/2022 (PEC da transição, que ratificou as emendas do relator, de comissões e individuais até 2% da receita corrente líquida). O argumento foi de que essas EC são incompatíveis com  os seguintes princípios da CF/88 que são cláusulas pétreas irreformáveis: separação dos poderes, sistema federativo e democrático. E que essas mudanças promoveram uma espécie de “semipresidencialismo orçamentário” não previsto na CF. Com muita coragem cívica, o ministro Flávio Dino deferiu medida cautelar para suspender todas as emendas impositivas introduzidas por essas emendas. Para isso, utilizou o princípio instrumental de hermenêutica constitucional conhecido como “interpretação conforme à Constituição”. E, assim, determinou que a execução de emendas ao orçamento obedeçam a critérios técnicos de eficie%u0302ncia, transpare%u0302ncia e rastreabilidade, proibindo  qualquer interpretação que confira caráter absoluto à impositividade de emendas parlamentares. Determinou, ainda, que a execução das emendas parlamentares impositivas, inclusive as que venham a ser criadas, terá que obedecer aos requisitos da CF e das leis aplicáveis: plano de trabalho, compatibilidade com a LDO e o PPA, efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, cumprimento de regras de transpare%u0302ncia e rastreabilidade, com identificac%u0327a%u0303o do autor da emenda e destino das verbas. A cautelar, finalmente determinou a sustação de todas as emendas impositivas até nova regulação a ser feita mediante diálogo institucional ente os poderes Executivo e Legislativo.     

Para Flávio Dino, o “orçamento impositivo não deve ser confundido com orçamento arbitrário”. É inconstitucinal “a execução privada e secreta do orçamento público”. As mesas diretoras da Câmara e do Senado, e os partidos PL, União Brasil, PP, PSD, PSB, MDB, Republicanos, PSDB, Solidariedade, PDT e parte do PT assinaram requerimento ao presidente do STF pedindo a suspensão da cautelar. Sem êxito. Em seguida, o plenário virtual confirmou a cautelar por 11x0. A retaliação veio em forma de chantagem: destravamento de duas PEC. Uma permitindo que o parlamento revogue decisões do STF e outra proibindo as decisões monocráticas de seus ministros. O Congresso age, assim, em defesa da manutenção do sequestro orçamentário que promoveu nos últimos anos à revelia dos princípios constitucionais. Na contramão da opinião pública e dos especialistas, desta feita, o corporativismo parlamentar não deve prevalecer. Essa farra das emendas deveria servir de advertência para a deformação da democracia brasileira causada pelo atual sistema partidário e eleitoral. Hoje temos uma democrcia bloqueada e capturada por oligarquias partidárias nada democráticas. Sequestraram o orçamento com as emendas impositivas. Passaram a decidir quem pode se eleger ao manipular os R$ 8 bilhões dos fundos eleitoral e partidário a seu bel prazer. Geralmente privilegiando familiares e apaniguados. Até quando? Desta feita, ao menos o sequestro do orçamento foi corajosamente enfrentado pelo ministro Flávio Dino e seus pares.

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