Uma vida em vão

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 24/08/2024 03:00 Atualizado em: 24/08/2024 06:07

Dela me lembro de ter frequentado também a escola de dona São Pedro, em casa na esquina da Praça da Igreja. Risonha, bem alva, já mostrando a robustez do corpo. Uma imagem que vou buscar lá longe, e não vai além dela estar a conversar, animadamente, com um aluno, que não faço ideia de quem era. Ano? Não sei. Depois, muito depois, vou vê-la na calçada da sua casa, na mesma praça, ao lado dos pais, um trio que, aos domingos, pela tarde, fazia ponto para ver as pessoas que pelo rinque passeavam, o que se repetiu ano a ano, até onde na praça estive presente.

Talvez, durante a semana, chegasse à varanda da casa. Ou à janela. Não tenho lá muita certeza. O real é que não cursou o primário. Acredito que não fez amizade com ninguém, nunca tenha ido a procissão, missa, feira, comércio, cinema, baile e a qualquer festa. Se foi, nunca vi, nem soube. O mesmo asserto no sentido de não saber os valores das cédulas de dinheiro. Em suma, escrava da casa, à espera do Príncipe encantado, que nunca apareceu, sem vocação para Rapunzel, trança não tinha, ou cumprindo ordens. Assim, comendo, engordando, dormindo, a vida foi lhe levando.

Dizem que o irmão chegou a falar com o vizinho para convencer o pai de que ela estava precisando ir ao dentista, algum dente a exigir conserto.  Na resposta, a invocação da  morte de uma senhora, alguns dias depois de extrair um dente, lá para os idos da década de trinta. Você não se lembra desse fato? Eu sou lá doido, e tudo continuou como antes no quartel de Abrantes.

Um dia, contudo, o castelo começou a ruir. Em intervalos variados de tempo, morreu a velha empregada; depois, a mãe; após, o irmão; o pai foi o último. Ela, enfim, sozinha, cabelo imenso e branco, passarinho criado em gaiola, sem saber voar por espaço maior, assistida por algum parente, moldada à prisão de sempre, agora desabituada  a ser só, sem companhia para sentar na calçada na tarde do domingo, quiçá as pessoas passeando na praça não lhe despertassem mais interesse, sem televisão em casa – o pai, de mão fechada para certas despesas, despesas, não, desperdícios, nunca comprou um aparelho -, da solidão completa fatalmente o óbito. Aconteceu.

Soube por mamãe, ou por Alba. O que me veio à mente foi a expressão brancas nuvens em pedras tumulares. Penso que, afinal, com mui e grande antecedência, já retratava, em síntese, a sua vida.

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