O grande nascimento

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicado em: 09/09/2024 03:00 Atualizado em: 07/09/2024 07:13

As primeiras gerações dos jovens africanos formadas durante as lutas pela abolição, se agruparam em quilombos ou se fixaram nas cidades fazendo das ruas áreas de lazer, espaços de diversões. Moleques de rua. Entronizaram os folguedos trazidos da Mãe África ou as festanças adaptadas das motivações cristãs dos antigos senhores.  

Pastoril, fandango, maracatu, samba de roda, capoeira, jogando o corpo contra os capitães do mato ou pulando nas alegrias do carnaval. Muitos deles aprenderam as artes da guerra servindo aos patrões. Com o corpo livre para as brincadeiras exigidas pelo espírito, esses jovens ganharam espaço para praticar a violência aprendida com os violentos capitães do mato. Lições que pessoas e nações aprendem com invulgar rapidez.  

Foi depois da Lei Áurea, já no Século XIX, que surgiram os filhos da escravidão, gente valente, imortalizados nas lendas populares e nos jornais da época. Personagens como Apolônio da Capunga, Jovino dos Coelhos, João Sabe Tudo, Adama, fundador e dirigente do Maracatu Oriente Pequeno, e o maior e mais reverenciado de todos. Nascimento Grande, batizado José Antônio do Nascimento.

Nascimento tinha quase dois metros de altura, imponente, força desmedida, capaz de carregar dois sacos de 60 quilos, um em cada braço, empregada nas tarefas diárias de estivador no Porto do Recife. Só perdia em corpulência para a própria fama que conquistou como capoeirista destemido.

Ele viveu no Recife entre 1842 e 1936, época em que a cidade era território livre para desordeiros, brabos, capoeiras da linha de frente dos clubes carnavalescos, bandidos que vendiam proteção aos poderosos. Era o Recife sangrento, violento, sem lei. Cada bairro tinha seu valentão impondo desassossego aos moradores e temor aos visitantes.

Estimado, admirado, respeitado, Nascimento espantava os arruaceiros manejando bengala de maçaranduba quase extensão do corpo. Mulato altivo, o chapelão de abas largas o fazia mais alto; o bigode de vassoura cobrindo todo o traço da boca, dava-lhe respeitabilidade. A bengala de dez quilos era santo remédio para botar a correr os afoitos que ousassem desafiá-lo.

Raro era o valentão que não tivesse conhecido a força de sua bengala, as artes da sua capoeira. Virou lenda e alguns brigas ficaram popularizadas em literatura de cordel e nos registros de escritores consagrados, Câmara Cascudo é um deles.

Devoto de Nossa Senhora do Carmo, Nascimento não era santo, mas era cordial e defensor dos oprimidos. Notívago, mulherengo, tinha uns xodós nas pensões de raparigas, mocinhas sem destino. Certa vez, um freguês truculento bateu numa dessas mulheres, Nascimento saiu em defesa da jovem, aplicou uma surra no elemento, mandou que ele vestisse as saias da mulher e desfilasse pelas ruas da zona, suprema humilhação.

Em outra circunstância, Nascimento começou a se bandear para a mulata Luíza, muito bem-feita de corpo, seios fartos, bunda grande, cabelos alvoroçados, moradora da Cambão do Carmo. Não demorou para chegarem aos finalmentes. O problema era que a jovem era tida e mantida por um abastado comerciante do Recife, conhecido na praça, rico de dinheiro, comendador de diploma na parede, amigo do governador Barbosa Lima, ( 1892 — 1896). Contrariado com os ornamentos plantados pela amante, o traído contratou um meganha para matar Nascimento. A empreitada não deu certo. O pistoleiro errou o alvo, Nascimento deu-lhe uma surra de criar bicho e obteve do indivíduo o nome do autor do mando. No dia seguinte deu uma camada de pau no mandante.

O governador Barbosa Lima, então presidente da Província de Pernambuco, mandou prender Nascimento. Nascimento preferiu não esperar. Pegou um Ita, desembarcou no Rio de Janeiro, Morreu em paz aos 94 anos, no lugar de sua preferência: a cama.

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