O papel descoberto

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 21/09/2024 03:00 Atualizado em: 21/09/2024 05:50

Ah, a velha mania de guardar papel nos livros, o papel bem acomodado no calor das páginas que o sufocam, até que um dia, enfim, enfim, o livro é aberto e o papel continua perfeito, cadáver que a terra não comeu. Então, a borbulha a história que o papel esconde e guarda, o que nele contém, a volta para o passado, às vezes próximo, às vezes distante, e o efeito que a descoberta provoca. Foi o que aconteceu, há pouco tempo, com uma troca de mensagens que uma colega da Faculdade manteve comigo, no meio de alguma aula, em ano que não me recordo mais, chutando o de 1971.  

Em caneta de cor vermelha, a mensagem enviada: Segredo. Passei no concurso do tribunal no primeiro lugar. Psiu!!!!!!!! Minha resposta, em caneta de cor azul: Puxa! Parabéns! (em segredo: cargo? Horário?). Resposta: Escriturário Datilógrafo. 2 às 6 da tarde, lógico. Dinheir [sem o o]: não sei; tive vergonha de perguntar. A troca de mensagem aí termina. O mais, palavras soltas no  papel, sem conexão com a mensagem: especulação; expedição; recepção; informes. Pronto.

A autora foi uma colega de oito anos – três do clássico e cinco do curso de Direito -, primeira da turma, organizada, disciplinada, a capacidade de anotar tudo que o professor falava, mesmo sem ser taquígrafa,  a passar a limpo depois com a mesma calma e cuidado, que despertou muita paixão ao longo dos anos, em um curso e no outro, principalmente no superior, onde dois colegas, um, inclusive, padre, e outro, odontólogo, se quedaram de salamaleques, e, igualmente, para fechar o trio, um dos professores, que a aluna inspirou um poema, pedindo-lhe depois que não revelasse o fato a ninguém, o que, em décadas posteriores, ela me fez depositário.  

Foi quando me queixei, observando que o ex-marido, já no clássico, nos momentos do recreio, ia a nossa sala, sentava-se ao seu lado, se tornando uma espécie de muro, a fim de afastá-la de possível paquera. Depois, casados, trocou-a por outra. Pois bem. O papel volta ao mesmo livro, para continuar o descanso, certo eu de que, em outros livros, de tempos remotos, velharias assim aguardam a vez de serem despertadas, pela esperança de ainda causarem impacto e atiçar sonhos extintos, preciosidades de ontem que minha mania de conservá-los assim crismou, e hoje, tão só se transformam em máquina de fomentar suaves memorações... 

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