Vovô Aristides: o final

Vladimir Souza Carvalho
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Publicado em: 28/09/2024 03:00 Atualizado em: 28/09/2024 06:37

Vovô Aristides tinha o hábito de ficar acocorado apoiado na parede, no pátio da casa, a mascar fumo de feira. De quando em quando, a cusparada molhava o chão. O costume predominou enquanto pode sair e ir ao mercado. Depois, a idade forçando a venda da fazenda, ficou em casa, limitando-se a ir ao comércio, de quando em quando, a missa também, o que fazia trajando um terno amarronzado, sem gravata, chapéu ramezoni na cabeça. Depois, muito depois, o sentar na varanda, a grade de ferro fechada, o pé direito na cadeira, - gesto que vi um filho, tio Antônio, décadas depois da morte de vovô, agir do mesmo jeito -, até que foi perdendo a consciência, o silêncio ficando maior, sem reconhecer as pessoas ao seu redor.

Foi interditado. Levado para o foro, não deu nenhuma atenção ao juiz que lhe interrogava, a menção ao meu nome, também juiz, não lhe alterou a conduta, gastando o tempo  em cuspiduras,  e o magistrado, meu amigo, depois me revelaria que vovô só fez escarrar a sala de audiência, sinal da demência que lhe tirava a consciência de tudo, a dificuldade até de se alimentar, a colher que se enganchava nas bordas do prato, e, ele, ali ficava, imóvel, até que a filha levava o talher até o prato e depois lhe passava o comando.    

O médico, nomeado perito, esteve em sua casa, num domingo, indagando vovô da sinuosidade do braço, ao que ele esclareceu que foi de uma queda em criança, na Serra, em Itabaiana, e eu, que assistia, vi o mundo desabar, vovô respondendo corretamente as perguntas, até que, indagado sobre a Serra, revelou que ia sempre para lá, e, daí em diante, as respostas exibiram total desconexão com a realidade vivida ou, talvez, o retorno a infância depois de oitenta e tantos anos.

No dia dos noventa anos, não reconheceu ninguém, Bosco mencionava o nome dos netos, ele, afinal, e você, quem é? A papai, uma dúvida: Veio de cavalo?  Guardo no gabinete a foto, no instante dos parabéns, o olhar baixo, a evidente distância que se encontrava do ambiente e da vida. Morreu uns quatro anos depois, fato que assisti, o quarto com alguns filhos e netos, uma neta tirando-lhe a pressão a anunciar o final, confirmando o óbito. Eu, os olhos lacrimejando, vi a grande árvore, já desfolhada, que abrigou toda a numerosa família, desabar silenciosamente.

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