Ascenso, o jogador

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicado em: 04/10/2024 03:00 Atualizado em: 03/10/2024 23:34

O vulto imenso do poeta Ascenso Ferreira, coroado pelo chapelão de abas largas, enchia as ruas do provinciano Recife no iniciar do século passado. O tamanho do prestígio literário do autor de Catimbó e Vou Danado pra Catende sobrepujava os quase dois metros de altura e os seus 150 quilos. No auge da popularidade, Ascenso (1895-1965) era peso pesado recitando seus poemas, exaltando a terra, enaltecendo a região.

Quando da eleição de Juscelino Kubitschek, em 1955, Ascenso tomou gosto pela política e participou ativamente da campanha que iria colocar o mineiro na Presidência do Brasil. Convidado, Ascenso foi orador aplaudido em comício no Rio de Janeiro e incorporou-se ao grupo do vitorioso JK. Lembrado, o novo presidente o nomeou para a presidência do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Então veio o impasse. O respeitado Instituto fora ideia de Gilberto Freyre e era ali que o consagrado escritor criava, produzia, seduzia os visitantes. A intelectualidade pernambucana prenha de preconceito, protestou. Ascenso? Não podia.

A nomeação foi cancelada dez dias depois, aliás, por iniciativa do próprio poeta. Sabedor do veto, Ascenso telegrafou ao presidente eleito: “Dr. Juscelino, me desnomei. Eu pedi a VS um emprego e o senhor me arranjou uma encrenca”. Dias depois, JK demonstrou sua gratidão. Ascenso foi nomeado assessor do Ministério da Educação e Cultura, com direito a carro, motorista e nem precisava dar expediente: só comparecia para assinar o livro de ponto e receber o salário.

Enfim, a sorte chegara. O jogo era um dos seus pecados e a falta de sorte vinha com ele. Dez anos antes, quando os cassinos funcionavam no Brasil, Ascenso era presença constante no finado Grande Hotel. Foi lá, numa noite chuvosa, que parecia ter finalmente encontrado a sorte grande. Era ficha colocada no pano verde e o retorno certo e multiplicado. Já madrugada, o compositor Capiba, amigo e avesso ao jogo, vendo a fortuna que Ascenso acumulava, ficou preocupado e pediu que o poeta parasse. Mas nada parecia demover o jogador. Até que Capiba lembrou o único argumento capaz de sensibilizar Ascenso naquela hora: “Ascenso, já são onze horas. Daqui a pouco o restaurante fecha”.

Diante do argumento irrecusável, o poeta açambarcou as fichas, encheu os bolsos e trocou tudo no caixa. Uma pequena fortuna. Na saída, Zé Neguinho, engraxate, de  mãos mágicas e riso aberto, ofereceu: “Vai graxa, doutor Ascenso?”.

Serviço feito, sapatos lustrando, cliente satisfeito, Zé Neguinho ganhou a maior gorjeta de sua vida: 500 mil réis, quando uma graxa custava cinco mil réis. Ascenso estava abonado e faminto. Pegou Capiba pelo braço e chegou triunfante ao restaurante, exigindo a melhor lagosta, vinho mais famoso, champanhe importada. Farto e satisfeito, charutão aceso, puxou novamente Capiba: “Escute aqui, meu nego, estou no meu melhor dia. Vamos voltar lá que hoje estouro aquela banca!”. “Você ficou maluco, Ascenso? Tome juízo e vamos embora!”. “Que nada, meu nego, vamos lá”.

Foram. E antes que o dia amanhecesse, Ascenso tinha perdido tudo o que havia ganho, o capital inicial, alguns trocados de Capiba e um empréstimo feito às pressas com o garçom amigo. Solidário, Capiba arrastou o cabisbaixo Ascenso porta afora. Já na saída, o poeta pareceu despertar diante dos primeiros raios de sol que haviam afastado a noite. À sua frente, o risonho Zé Neguinho voltou a oferecer: “Vai graxa, doutor Ascenso?”

“Vai graxa o quê, safado? Cadê meu troco?”.

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