Proteção às cotas para reparar séculos de injustiça racial

Paulo Artur Monteiro e Ana Paula Azevedo
Paulo Artur Monteiro é advogado há 27 anos, ex-conselheiro estadual da OAB-PE, Master of Law em Direito Regulatório e Infraestrutura, especialista em Direito Administrativo Municipal e em Mobilidade Urbana e Ana Paula Azevedo é advogada há 15 anos, ex-diretora da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE, especialista em Direito Civil e Empresarial, mestra em Direito, doutoranda em Direito, professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e diretora do Instituto Enegrecer.

Publicado em: 29/10/2024 03:00 Atualizado em: 29/10/2024 04:46

Embora o Brasil tenha avançado em muitos aspectos sociais ao longo do tempo, ainda é preciso superar a ideia amplamente difundida de uma suposta democracia racial. Esse conceito não explica, por exemplo, por que, segundo o IBGE, a proporção de pretos e pardos entre os pobres é o dobro da de brancos. A suposta democracia racial contrasta radicalmente com o fato de que a maioria dos cargos de decisão e prestígio — da magistratura às diretorias de grandes empresas — permanece monopolizada por pessoas brancas.

Há uma presença ainda tímida de negros e negras nos tribunais, nos conselhos empresariais, nas reitorias universitárias e até mesmo nos espaços midiáticos, onde as vozes negras são frequentemente confinadas a papéis estereotipados. Isso porque o racismo no Brasil é sim estrutural, possui várias engrenagens e está impregnado nas relações. Combatê-lo exige mais que discurso. Requer mobilização e decisão. Por isso, as políticas de cotas enquanto ação afirmativa seguem urgentes para romper com a hegemonia e abrir espaços reais de oportunidade para a população negra brasileira.

Sem medidas compensatórias, a negritude permanecerá alijada dos espaços de prestígio e poder, confinada às margens de uma sociedade que, embora proclame igualdade, raramente pratica inclusão. As ações afirmativas devem representar o compromisso institucional em reparar, mesmo que minimamente, os danos de um passado que continua a projetar suas sombras sobre o presente.

A política afirmativa baseada na autodeclaração de raça foi concebida como um meio de reconhecer as complexidades da identidade racial em um país tão plural como o Brasil. Ela parte do princípio de que cada pessoa deve ter o direito de afirmar a sua própria identidade, valorizando o que essa pertença representa social, cultural e historicamente. No entanto, para assegurar que esses espaços realmente sirvam à população negra efetivamente, é fundamental a presença das comissões de heteroidentificação. Tais comissões atuam de maneira criteriosa para verificar a coerência da autodeclaração com a realidade visual e fenotípica das pessoas, utilizando critérios objetivos que incluem traços físicos historicamente associados à identidade negra no Brasil para fins de efetivação das políticas de ação afirmativa.

A importância das comissões de heteroidentificação está, portanto, justamente na missão de preservar a integridade das políticas de cotas, garantindo que as oportunidades se destinem àquelas pessoas que verdadeiramente enfrentam as barreiras e desafios impostos pelo racismo estrutural, garantindo ocupações com representatividade. Ao cumprir esse papel de forma ética e transparente, as comissões protegem o caráter inclusivo e reparador das cotas raciais, assegurando que o direito à reparação histórica alcance de fato a população negra, para a qual essas ações afirmativas foram concebidas.

Proteger as ações afirmativas e as políticas de cotas é passo inegociável para a construção de um Estado Democrático de Direito cuja justiça permeie todas as esferas da sociedade.

Cotas e ações afirmativas não são favores concedidos, muito menos devem ser lidas como um gesto assistencialista. Elas são um dever do Estado, uma reparação urgente e necessária diante dos séculos de opressão que pessoas negras sofreram e continuam a enfrentar. E mais: essas políticas isoladas não resolverão o problema do racismo estrutural. Elas representam apenas um passo de um caminho longo e árduo de reparação; são, portanto, ponto de partida, não o desfecho de um pacto antirracista.

Por tais razões, o respeito às políticas de cotas e a preservação das ações afirmativas são fundamentais para a promoção de uma justiça social verdadeira no Brasil. Em uma sociedade marcada por desigualdades históricas, raciais e sociais, tais políticas representam um compromisso ético e moral com a correção de injustiças passadas e presentes. Sob a ótica do Estado Democrático de Direito, é imprescindível que se fortaleçam as medidas de inclusão, garantindo que a população negra possa acessar os mesmos direitos e oportunidades, contribuindo para a construção de um país mais justo, solidário e inclusivo.

Defender as cotas e as ações afirmativas é, acima de tudo, defender uma transformação estrutural no Brasil, um país que, embora orgulhoso de sua diversidade, há séculos nega às pessoas negras o direito de ocupar posições de protagonismo e poder.

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