Torcida organizada
Aldo Paes Barreto
Jornalista
Publicado em: 15/11/2024 03:00 Atualizado em:
Morador da Encruzilhada, no trecho onde começava a Vila do Ipase, - território de nossa juventude, - Esteliano era personalidade dominante no bairro que se formava. Não era tão alto quanto nossa visão de crianças imaginava, mas a voz de trovão e os modos rústicos, autoritários, faziam dele temido, respeitado, embora fosse simples e afável que se enturmava facilmente com os jovens.
Não era notívago. A única coisa que o faria dormir tarde era quando o Sport jogava. Torcedor de carteirinha, fosse onde fosse, acompanhava pelo rádio os jogos do seu time. No início dos anos 1950, o Sport realizou amistosos pelo interior de Minas, enfrentando o Tupi. Jogos noturnos.
Ligou o velho rádio de válvula e começou a buscar a emissora mineira que transmitiria o jogo. Dial movido para lá, para cá. Nada. O rádio apitava, surgiam restos de anúncios, pedaços de noticiários e nada do jogo. A luz verde do receptor sumia, acendia, apagava. O jogo estava começando. Esteliano angustiado. O rádio continuava apitando, vaiando, zombando dele. Respirou fundo, chamou o filho e ordenou:
- Ô, Zezinho vai lá na barraca de Joaquim, traz uma lata de querosene.
Ordem dada, ordem cumprida. Esteliano levou o velho rádio para o meio da rua, derramou o querosene no antigo companheiro de jornadas esportivas e tocou fogo.
Foi dormir. Naquela noite nem soube o resultado do jogo.
Dias depois, surpreendeu a vizinhança com a chegada de uma potente radiola Telefunken, marfim, com rádio, toca-discos. Coisa fina, comprada na Mesbla à prestação. As transmissões esportivas continuavam as preferidas. Domingo de jogo entre Náutico e Sport, convidou o bom vizinho José Maria para acompanhar a transmissão com as devidas honras de convidado, direito a cachaça de cabeça que recebera de um engenho e tira-gosto. Salame, queijo de coalho, azeitonas e charque frita com cebola. Delícia.
De comum, não tinham nada. Seu Zé Maria era intelectual, marxista, torcia pelo elitista Náutico e gostava de pássaros. Esteliano, nada disso. Orgulho mesmo, Zé Maria tinha da juventude marxistas quando participou da redemocratização, depois da II Guerra, colaborando com a campanha eleitoral do Recife.
A candidatura do comunista Gregório Bezerra, também candidato a deputado federal, obteve 10% dos votos à prefeitura do Recife. Os candidatos à vereança, entretanto, se saíram bem. Na capital pernambucana, conquistaram 12 dos 25 assentos da Câmara Municipal. Um feito.
Apesar do antagonismo do vizinho, não custava nada ouvir o jogo. Esteliano o recebeu com fidalguia. Mesa posta de frente para a potente radiola, garrafa de afamada cachaça mineira Germana já aberta, tira gostos variados. Queijo de coalho, iscas de carne de sol assada, azeitonas. E palitos.
Durante o jogo, o convidado comemorava com ênfase os gols do seu time. Quando o Náutico marcou 3 a 1, Zé Maria explodiu em alegria, pulou e dançou.
Esteliano levantou-se, estendeu o braço apontando para o portão e gritou alucinado: “O quê??? O quê??? Você vem pra minha casa, toma da minha cachaça, come do meu tira gosto e ainda torce desse jeito pelo Náutico? Pra fora!!! Pra fora! ”
Zé Maria atônito, perplexo, ergueu os braços incrédulo e Esteliano determinado: “Prá fora!!! Pega a reta!!! Pra fora da minha casa!!! Comunista Fela da puta!!!”.
Fim do jogo e da amizade: Náutico 3 a 2.
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