Redução da maioridade penal pode ter efeito na legislação eleitoral e trabalhista Se aprovada no Congresso, redução da idade penal para 16 anos pode causar confusão em várias áreas da legislação. Mudança teria impacto no sistema eleitoral e em leis trabalhistas

Por: Adriana Bernardes - Correio Braziliense

Por: Marcella Fernandes

Publicado em: 07/06/2015 10:31 Atualizado em: 07/06/2015 11:13

Carlos Ayres Britto alerta que a redução abre precedente para questionar o limite de idade para dirigir e para ser obrigado a votar (Ana Rayssa/Esp. CB/D.A Press)
Carlos Ayres Britto alerta que a redução abre precedente para questionar o limite de idade para dirigir e para ser obrigado a votar
Redução da maioridade penal, você é contra ou a favor? O tema é tão polêmico e desperta tantas paixões que a resposta a essa pergunta costuma sair de pronto. O que pouca gente sabe é que uma possível alteração na lei vai abrir caminho para mais do que cadeia para adolescentes infratores. Se aprovada pelo Congresso Nacional, a redução da idade penal de 18 para 16 anos pode causar situações contraditórias e desdobramentos em diversas outras áreas da legislação brasileira.

De acordo com o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, a referência aos 18 anos está presente em diferentes matérias, como a eleitoral e a trabalhista. "As coisas estão entrelaçadas. A lógica é uma só", afirma. Ele alerta que, apesar de não causar mudanças automáticas, a redução abre precedente para questionar, por exemplo, o limite de idade para dirigir e para ser obrigado a votar.

Britto ressalta que haverá necessidade de se reinterpretar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma vez que o documento trata tanto da proteção quanto da punição de brasileiros entre 12 e 18 anos. "O entendimento da Constituição é que o desenvolvimento da personalidade não se perfaz senão a partir de 18 anos. Até essa faixa etária, a Constituição diz que o indivíduo está em formação", explica. Para o ministro aposentado, a redução viola cláusula pétrea da Constituição - dispositivo que não pode ser alterado.

A reportagem ouviu especialistas de diferentes áreas para entender os reflexos da alteração em áreas como trânsito, venda de bebidas alcoólicas, leis trabalhistas e no próprio ECA. A preocupação é compartilhada pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello. "É razoável você dizer que responde como adulto (ao cometer crimes) e ao mesmo tempo ser proibido de conduzir um veículo automotor?", questiona. Ele lembra que tais reflexos vão depender da precisão do texto aprovado pelo Legislativo, que pode, por exemplo, restringir a redução da maioridade penal apenas em casos de infratores que cometam crimes hediondos. Mello avalia, ainda, que a PEC vai aumentar o encarceramento e não vai reduzir a criminalidade. "Entre prós e contras, os contras sobrepujam os prós. Eu não vejo como algo desejável", comenta.

No âmbito trabalhista, apesar de a redução da maioridade penal não causar alterações diretas, pode motivar discussões para futuras mudanças. "A redução da maioridade penal não afeta diretamente as relações trabalhistas, contudo, inicia-se assim mais uma discussão sobre o abandono escolar para a entrada de jovens no mercado de trabalho em atividades que hoje são vedadas", explica o advogado trabalhista Marcílio Braz. A legislação atual impede o trabalho para menores de 14 anos. Entre 16 e 18, há restrições, como não trabalhar em ambiente penoso, insalubre, perigoso, que prejudique a formação moral e psicológica, desenvolvimento físico, além de trabalho noturno. Menores tampouco podem fazer hora extra, e o empregador é obrigado a ceder tempo necessário para o comparecimento às aulas.

"Hoje, essas proibições mantêm o jovem na escola. Qualquer alteração nessa legislação trará graves prejuízos aos jovens, que são o futuro de nosso país", afirma Braz. O critério usado é que pessoas nessa faixa etária ainda estão em fase de desenvolvimento. O argumento encontra respaldo nas outras esferas do direito brasileiro, além das normas internacionais ratificadas pelo Brasil, como a Convenção 138, da Organização Internacional de Trabalho (OIT). Há, ainda, uma relação direta com a possível liberação do consumo de bebidas alcoólicas, uma vez que é proibido o trabalho de menores em estabelecimentos que comercializem esse tipo de produto.

Habilitação para dirigir no alvo
O efeito cascata da redução da maioridade penal pode colocar atrás do volante adolescentes de 16 anos. Isso porque a primeira condição para um brasileiro se habilitar a conduzir um veículo é ser plenamente imputável. Para o professor de direito penal e processual e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal (OAB-DF) Rafael Augusto Alves, com a aprovação da emenda, o efeito automático na legislação de trânsito só não ocorrerá se o Congresso criar mecanismos que impeçam a extensão dos direitos e deveres. "É preciso ver como o texto será aprovado. A imputabilidade será para toda e qualquer espécie de infração penal ou vai se restringir a crimes hediondos, por exemplo? Mas há uma questão mais profunda ainda: se o ECA fosse cumprido integralmente, talvez não precisássemos disso", defende.

Caso a PEC seja realmente aprovada, o Brasil terá que repensar a formação do condutor. Doutor em estudos de transportes, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Paulo César Marques entende que não há restrição do ponto de vista cognitivo para um adolescente de 16 pegar o volante. Mas defende a necessidade de um "esforço adicional" na formação dos futuros motoristas, porque há diferenças consideráveis do ponto de vista da maturidade. "Teoricamente, se uma pessoa com 16 anos pode votar e decidir o futuro do país, ela pode conduzir um carro. Mas a maturidade precisa ser mais trabalhada e o processo de formação necessitaria ser ajustado para a nova realidade", destaca Marques.

Diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito do Detran-DF, Silvain Fonseca não tem dúvidas sobre o que chama "efeito dominó" da redução da maioridade penal na legislação de trânsito. "Se isso acontecer, o Estado terá que reforçar a educação, além de trabalhar as questões de maturidade e comportamento nas vias. Teremos um perfil novo de condutores e seremos obrigados a pensar como seria a forma de capacitação desse público".

A prevenção ao uso de drogas lícitas, como o álcool, está no pacote de normatizações que poderão ser afetadas (Nando Chiappetta/DP/D. A Press)
A prevenção ao uso de drogas lícitas, como o álcool, está no pacote de normatizações que poderão ser afetadas

VENDA DE ÁLCOOL
A prevenção ao uso de drogas lícitas, como o álcool, está no pacote de normatizações que poderão ser afetadas diretamente pela redução da maioridade penal. Há menos de dois meses, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei Federal 13.106, que torna crime a venda e a oferta de bebidas alcoólicas e outras drogas que podem causar dependência a menores de 18 anos. "Há um interesse econômico que se sobrepõe ao direito à saúde da população como um todo", lamenta Alessandra Diehl, psiquiatra e secretária da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead). Ela diz não enxergar desdobramento imediato, uma vez que a legislação que veta a venda e oferta de drogas lícitas e ilícitas a menores está bem fundamentada. Quem desrespeita a Lei 13.106 pode ficar preso por dois a quatro anos e pagar multa de até R$ 10 mil.

Contradições na proteção de jovens
A redução da maioridade penal criaria uma situação contraditória em que um jovem de 16 anos pode ser punido por um crime como adulto, mas continua sendo protegido como adolescente, uma vez que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - que trata da faixa etária de 12 a 18 anos - continuaria vigente. "Desmontaria todo o sistema legal de proteção da juventude, então geraria uma série de incompatibilidades e contradições nos diferentes sistemas", explica Sinara Guimieri, consultora jurídica do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. "A aprovação criaria um precedente perigoso para que o Congresso venha a reformular o ECA", reforça a procuradora da República Mariane Guimarães.

Se o ECA for alterado, crimes cometidos contra adolescentes entre 16 e 17 anos seriam descaracterizados. Entram nessa categoria exploração sexual, pornografia infantil, sequestro e tráfico internacional de pessoas, entre outras questões. Atualmente, quem envia criança ou adolescente de até 18 anos para o exterior com a finalidade de obter lucro pode cumprir de quatro a seis anos de prisão, além de pagar multa. Se houver emprego de violência, a pena sobe para oito anos, somada ao tempo correspondente aos atos violentos praticados. Com a possível aprovação da PEC 171, seria considerada vítima desse tipo de crime pessoa com até 16 anos. A alteração valeria também para crimes como filmar ou fotografar menores em cenas pornográficas, cuja punição inclui multa e reclusão de quatro a oito anos. A pena aumenta se o autor do crime for agente público ou parente da vítima.

CRIMES SEXUAIS
Na avaliação do sociólogo Dijaci David de Oliveira, da Universidade Federal de Goiás (UFG), a aprovação da emenda pode incentivar crimes sexuais se causar alterações no ECA. "Vai ter a exploração sexual legal entre 16 e 17 anos e abrir a porta para ampliar a exploração no segmento logo abaixo, entre 14 e 15 anos, que já existe", afirmou. Ele lembra ainda que a capacidade de fiscalização do cumprimento da lei é precária, o que agrava o problema. Em 2013, o serviço Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos (SDH-PR) registrou 124.079 denúncias de violência cometidas contra criança e adolescente no país. Desse montante, 28% se referiam a violência sexual. Para Oliveira, os números mostram como, mesmo com a proteção legal, a adolescência brasileira é vulnerável.


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