Existe uma expressão no Código Penal brasileiro que poucos entendem. Chama-se “excludente de ilicitude”, quase um palavrão, mas não pare de ler agora. De forma mais simples, a tal regra permite inocentar alguém de um ato que teve aparência de crime, mas, quando se vê, ao final, não é ilícito, como a legítima defesa. A brecha já existe no atual conjunto de normas do ordenamento jurídico nacional, mas, nas palavras do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), segundo advogados ouvidos pelo Diario de Pernambuco, a exceção à regra defendida por ele vai além, porque o militar reformado defende “carta branca” para o policial em serviço e ressalva que “um soldado que vai à guerra não pode sentar no banco dos réus”. Como assim? Seria a pergunta da deusa Têmis, símbolo da Justiça e igualdade, uma estátua de olhos vendados e uma balança nas mãos.
No discurso de qualquer outra pessoa, a proposta poderia ser menos polêmica, porém acende o alerta quando o próprio candidato empodera a violência, diz apoiar a tortura, frisa ser necessária a morte de inocentes em determinadas ocasiões, e alega que seu livro de cabeceira é do comandante Ustra, um torturador da época da Ditadura Militar já condenado. Em todo o contexto político, as palavras do candidato, para os defensores da lei, são vistas como uma “licença para matar”.
O discurso de Bolsonaro em defesa dos policiais soa como música aos ouvidos da categoria que vive sob estresse, convive com a sombra da morte e, segundo o presidente da Associação dos Delegados de Polícia Civil de Pernambuco, Francisco Rodrigues, convive com o pior lado do ser humano todos os dias. Mas, cof-cof, respire. Será que vale um “cheque em branco” para qualquer policial, esse “foro privilegiado” defendido por Bolsonaro, ignorando que existem maus profissionais em todas as áreas? Para o presidente da OAB, seccional de Pernambuco, Ronnie Duarte, a resposta é não. Segundo ele, o projeto defendido pelo presidenciável é uma “licença para matar”.
“É uma temeridade a proposta como colocada, já que, aparentemente, concede uma 'licença para matar' aos policiais em serviço. Os policiais em todo o mundo possuem regras de engajamento e o uso da força deve ser necessariamente progressivo. Obedecidas as regras, tanto aqui quanto em qualquer país civilizado, o policial está resguardado, ou seja, já tem a sua retaguarda jurídica”, disse Ronnie Duarte.
E se, por acaso, o policial alegar estar em serviço, abusar do poder e da arma e matar um inocente? O caso precisa ser investigado e julgado, segundo a doutora em ciências criminais Carmen Hein de Campos, colaborada da Themis, ONG criada em 1993 que trata gênero, Justiça e direitos Humanos. Carmen foi coordenadora Nacional do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher. Segundo ela, o discurso do candidato é populista, porque o excludente de ilicitude já existe no código penal, artigo 23, para proteger o bom policial. “O que ele, na verdade ele está querendo dar é uma licença para matar. Sabe qual o impacto indireto nas mulheres? Quem vai morrer mais é quem já está morrendo, jovens, negros, pobres, moradores de periferia nesse país. Mães vão perder filhos mais do que já perderam, esposas perderão maridos, filhos perderão pais, é uma desestruturação das famílias”, explica. “Ele não está preocupado com as crianças órfãs, com mulheres que ficarão de luto e na luta pela vida toda para que esses crimes sejam
julgados quando policiais matarem sem justificativa”.
Para o gaúcho Carlos Eduardo Scheid, criminalista, doutor em direito, especialista em direito econômico e direito europeu, professor em direito processual e direito penal na Unisinos/RS, a proposta de Bolsonaro representa uma manifestação “rasa” da Política Criminal de Lei e Ordem. “O nosso atual Código Penal já apresenta causas de exclusão da ilicitude que abrangem a questão da atividade policial. Nesses casos, como ocorre em Estados Democráticos de Direito, o Poder Judiciário decide pela exclusão da ilicitude, o que pode ocorrer no início, inclusive, do procedimento criminal (…) O combate às facções criminosas que geram a violência em nossas cidades deveria ocorrer por meio da técnica policial de 'seguir a trilha do dinheiro', sufocando essas organizações pela falta de recursos. Em sendo assim, o discurso de lei e de ordem pela liberação da truculência apenas aumentará a violência, muito embora sirva, infelizmente, como vitrine política nos difíceis tempos em que vivemos”.
O contraditório – Reeleito deputado estadual, Joel da Harpa (PP), que defende a causa da segurança e o discurso de Bolsonaro. “Tenho conversado com policiais e comungo da mesma opinião dos profissionais de segurança que aprovam a proposta. O fato é que eles estão desprotegidos quando se fala em direitos com legislações específicas para a classe, o que tem levado milhares desses profissionais a deixarem de lado a real missão por medo de represarias e processos, os deixando acuados e desmotivados. Por isso, a proposta oferece alguma segurança jurídica”.
Leia a notícia no Diario de Pernambuco