SAÚDE DAS CRIANÇAS

Baixa taxa de vacinação abre caminho para doenças esquecidas

Em 10 anos, vacinas como BCG, Poliomielite e Tríplice Viral tiveram redução na cobertura vacinal o que pode prejudicar a saúde na infância e colocar o país em uma crise sanitária

Publicado em: 26/06/2024 22:32

Em uma década, o índice de vacinação da BCG caiu de 104% para 71% e da Tríplice Viral foi de 112% para 84,13% (foto: Ed Alves/CB/DA.Press)
Em uma década, o índice de vacinação da BCG caiu de 104% para 71% e da Tríplice Viral foi de 112% para 84,13% (foto: Ed Alves/CB/DA.Press)

As vacinas são métodos seguros e eficazes para combater doenças em todo mundo. Ainda assim, contrariando as evidências científicas, muitas pessoas deixam de vacinar as crianças, o que pode provocar uma grave crise sanitária, além de interferir no bom desenvolvimento ao longo da infância e juventude. 

Desde 2016, o Brasil não alcança as metas de cobertura vacinal, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2024, até o momento, nenhuma das vacinas de rotina da primeira infância atingiram a meta conforme dados do painel de cobertura vacinal do Ministério da Saúde. A pasta explica que os dados são atualizados constantemente pelas secretarias municipais, por isso, não é possível afirmar que as metas não serão alcançadas até o fim do ano. 

O presidente do departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Renato Kfouri, afirma que a queda constante nos índices de vacinação foi quebrada nos últimos dois anos e deve se concretizar este ano. “A gente interrompeu essas quedas em 2022. Em 2023, já houve um discreto aumento e agora 2024, parece que esse aumento continua se consumindo em todas as vacinas de uma maneira geral”, avalia Kfouri.

Kfouri afirma ainda que o governo federal aumentou o investimento nas campanhas de vacinação e que as estratégias precisam ser desenvolvidas pontualmente nos estados e municípios também. 

No mais recente boletim de imunização da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), publicado em maio de 2024, a organização destaca ações realizadas nos estados brasileiros para reconquistar a confiança da população e aumentar os índices de imunização. Em Minas Gerais, a Opas apontou a estratégia de vacinação extramuros e realização de oficinas com as equipes de vacinação. Durante as discussões, as equipes elencaram os seguintes desafios: falta de capacitações (39,7%), falta de recursos humanos qualificados para trabalhar em salas de vacina (27,2%), fake news (9,6%), falta de estrutura (7,4%). Já em São Paulo, ganhou destaque a campanha Vacina 100 Dúvidas. Após a ação houve importante aumento da cobertura vacinal de imunizantes que compõem o calendário básico, como a da vacina BCG, que subiu de 79,3% para 83,1%.

No ano passado, o Ministério da Saúde lançou um Movimento Nacional pela vacinação e investiu R$ 6,5 bilhões na compra de imunizantes. Também foram desenvolvidas ações para ampliar os horários e os locais de vacinação a fim de atingir mais pessoas. Estratégias que ajudaram, mas ainda não resolveram por completo o problema da queda na vacinação no país.

Segundo o Ministério da Saúde, não há registro de doenças imunopreveníveis que voltaram a incidir no país em 2024. Entretanto, com casos ressurgindo fora do país, principalmente na Europa e África, a pasta aumentou a vigilância e intensificou as campanhas de vacinação. 

Em uma década, o índice de vacinação da BCG — imunizante que protege contra a tuberculose — caiu de 104% para 71% e da primeira dose da Tríplice Viral foi de 112% para 84,13%. A Poliomielite também apresentou queda nesse período, indo de 96,76% em 2014 para 80,09% em 2024. 

Andrea Jácomo, coordenadora do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade de Pediatria do DF, explica que a queda na vacinação da Tríplice Viral e da Pólio acende um alerta, pois ela inclui a imunização de doenças graves e que podem ressurgir. “A tríplice viral inclui a proteção contra sarampo, caxumba e rubéola que podem ter consequências graves na saúde das crianças. A vacinação contra a Poliomielite é fundamental para prevenir a paralisia infantil. Há mais de 30 anos nosso país não registra casos dessa doença, mas ainda existe circulação do vírus da pólio no mundo e, assim como passamos com o sarampo recentemente, se a cobertura vacinal estiver baixa ficamos suscetíveis ao retorno dessa doença”, alerta a médica pediatra. 

A coordenadora do Departamento de Pediatria Ambulatorial da Sociedade de Pediatria do DF explica que o sarampo é uma doença que já havia sido erradicada no Brasil, mas voltou a preocupar nos últimos anos. “Fomos considerados país livre de sarampo após não registramos casos em 2016, mas em 2017 e 2018 tivemos mais de 9.000 casos e 12 mortes (maioria na região Norte) e em 2019 foram mais de 20.000 casos com 16 mortes. Graças às campanhas de bloqueio e reforço estamos numa situação melhor esse ano”, afirma a pediatra Andrea Jácomo. 

Renato Kfouri, por sua vez, alerta que sempre que a vacinação de uma doença já erradicada cai existe um risco de que a enfermidade retorne pois há um aumento no número de indivíduos suscetíveis. “À medida que você vai deixando muitas crianças não vacinadas, propicia a chance de doenças voltarem a circular. Entre elas, poliomielite, sarampo, rubéola, coqueluche, meningite e pneumonias, além de diarreias. O sarampo a gente está numa luta para a certificação da eliminação do sarampo. Nós eliminamos em 2016 e pela queda das coberturas, o sarampo voltou. É um exemplo vivo sobre a importância de recuperar as cobertura vacinal. Voltar a ter um país livre do sarampo é uma das metas para este ano ainda”, garantiu. 

Segundo o Ministério da Saúde, em 2018, devido ao intenso fluxo migratório de países vizinhos, associado às baixas coberturas vacinais em vários municípios, ocorreu a reintrodução do vírus do sarampo em território nacional. Desde 2019, o número de casos de sarampo está em queda: despencando de 20.901 registros, no referido ano, a 41 casos, em 2022. O último caso foi confirmado em 5 junho de 2022, no Amapá. 
 
 
Febre Amarela e dTpa 

Na contramão da queda da cobertura vacinal em geral, o número de vacinados com os imunizantes da febre amarela e dTpa aumentou significativamente na última década. A dTpa adulto saiu de 9,34% em 2014 para para 66,98% em 2024, enquanto a febre amarela foi de 46,86% para 64,71%. Embora tenham apresentado aumento, os índices ainda estão longe da meta e essas vacinas são importantíssimas para públicos específicos, conforme explica o infectologista André Bon, do Exame Medicina Diagnóstica, da rede Dasa no Distrito Federal. “Em 2017 e 2018, a gente passou por uma epidemia de febre amarela que causou diversos óbitos na região sudeste e levaram a uma corrida atrás da vacinação. Então, a gente observa um aumento da cobertura vacinal, mas ainda muito abaixo do que é necessário. Vale lembrar que a febre amarela é uma doença silvestre, então mesmo que o ser humano esteja vacinado ela circula ainda nas regiões de matas e o humano não vacinado que adentrar nessa região pode pegar febre amarela e evoluir para óbito. Portanto, a cobertura vacinal dessa doença, especialmente nas áreas de transição e nas cidades que são próximas às regiões silvestres é fundamental para evitar a disseminação da doença e a introdução da febre amarela urbana que não existe no Brasil desde 1942”, alerta. 

Já a dTpa protege contra outra doença que também tem registrado alertas de retorno em todo mundo: a coqueluche. “A dTpa teve uma introdução relativamente recente no calendário vacinal do adulto e ela é destinada especialmente para gestantes e para os profissionais de saúde. A dTpa protege contra difteria, tétano e pertussis, a bactéria causadora da coqueluche. É importante a gente ressaltar que a coqueluche é uma doença que está em alerta, inclusive, com uma nota técnica lançada recentemente, devido a um aumento importante do número de casos de coqueluche na Europa com um alerta para o risco de aumento de número de casos no Brasil”, afirma o infectologista André Bon. 

Segundo a Andrea Jácomo, o alerta mais recente do Ministério da Saúde se refere ao aumento do números de casos da coqueluche em 17 países e por aqui no nosso país algumas cidades como São Paulo já estão lidando com essa situação que resulta da baixa cobertura vacinal.

Vacinação na primeira infância 

A assistente de marketing Graciely Dias Vales, de 25 anos, é mãe de Lucca Barbosa, de 1 ano, e dá total atenção ao cronograma de vacinas do filho. Ela conta que viu de perto pessoas que sofreram em função da ausência da vacinação, o que reforçou os cuidados com a manutenção do calendário vacinal. “No início da vacinação contra a covid-19, meu pai atrasou e deixou de tomar uma dose, e quando ele pegou a doença quase foi a óbito na UTI, e hoje possui sequelas pulmonares e neurológicas. Ainda, conheço uma pessoa que deixou de tomar a vacina contra a meningite, e por conta da doença perdeu a audição totalmente.”

Ela afirma que entende a importância da vacina e, apesar de eventuais adversidades, sempre busca concluir a imunização. “Sei que a vacinação atualizada elimina ou reduz drasticamente o risco de adoecimento ou de manifestações graves, que podem levar à internação e até mesmo ao óbito. Eu e as outras pessoas de casa enfrentamos dificuldades na disponibilidade de algumas vacinas na UBS de referência onde morávamos, sendo necessário o deslocamento até outra unidade”, explica Graciely. 
 
Também reconhecendo a importância das vacinas, a esteticista e estudante de enfermagem Sumaia Adnan Mustafá, de 48 anos, mantém as vacinas da filha mais nova, de 2 anos e cinco meses, sempre atualizadas. Ela reconhece que o sistema imunológico dos pequenos pode não estar preparado para certas doenças e é importante fortalecer com as vacinas.

Sumaia reclama, no entanto, da falta de consciência coletiva de pais e mães que não vacinam as crianças ou ajudam a propagar doenças, especialmente na escola. “A última vez que minha filha adoeceu, foi por contato que ela teve uma bactéria contagiosa na pele. Como curso de enfermagem, pesquisei e percebi que se tratava de ‘impetigo’. Avisei a diretora onde teve uma visita de um enfermeiro para avisar as outras mães que não levassem seus filhos pra escola, quando estivessem com as feridas. Algumas mães não têm cuidado. Levam seus filhos doentes para escola e acabam contaminando outras crianças. A escola tinha que fazer uma cartilha, ou agentes de saúde tinham que se reunir e conscientizar a população de não levarem os filhos doentes para escola. Mas é complicado! Minha filha passa uma semana na creche e o resto do mês em casa”, desabafou. 

O impetigo é uma doença muito comum entre crianças pequenas, que provoca feridas perto da boca e do nariz. Altamente contagiosa, é causada pelo streptococcus, conforme explica Andréa Jacomo. “A gente teve aumento de casos de streptococcus. Veio um alerta da Inglaterra para os médicos usarem mais antibióticos. O streptococcus que pode fazer pneumonia, otite, meningite e uma das coisas que ele faz é o impetigo. Então a gente viu sim um aumento, mas quando acontece esses surtos na escola, principalmente entre crianças pequenas que levam a mãozinha no rosto, leva uma para outra é difícil a contenção. A gente passou um tempo sem ouvir muito, mas agora houve esse aumento das infecções no pós pandemia. Isto porque durante o isolamento, as crianças foram poupadas, mas à medida que foram retomando então aumentou um pouquinho o número desses casos”, afirma. 
 
 
Doenças na escola

Evitar a proliferação de doenças contagiosas entre as crianças é um desafio nas escolas, onde os pequenos se reúnem. Mas alguns cuidados podem ser tomados para evitar o contágio em massa, entre eles a higienização dos ambientes frequentemente, o atendimento de crianças que apresentem sintomas como febre ou diarreia, além da exigência do cartão de vacinação completo.  

Na Escola Casa Montessori DF, que atende 278 crianças entre 6 meses e 10 anos de idade,  os cuidados são frequentes, conforme garante a diretora da unidade, Carminha Cavallini. “Onde existem crianças e principalmente com menos de três anos, o contágio por vírus,  por bactérias,  acontece bastante.  Aqui na casa Montessori DF, temos um cuidado bastante importante em relação a isso, para que a doença de um bebê não passe para outro. Então, a primeira questão que nós temos é a questão da higienização mesmo.  No mais,  exigimos o cartão de vacinação já no ato da matrícula e estamos sempre atentos às atualizações das vacinas. Nossa enfermeira é muito atuante e cautelosa com os cuidados com as crianças e todos esses cuidados evitam muitas doenças, tanto que não temos muito contágio.”
 
 
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