8 de março Feminismo contemporâneo quer sepultar rivalidade feminina Alicerce do patriarcado, disputa entre mulheres precisa sair de cena para que a "sororidade", ideal de solidariedade e acolhimento feminino, cresça e dê frutos

Por: Maira Baracho - Diario de Pernambuco

Publicado em: 08/03/2016 08:55 Atualizado em: 08/03/2016 09:02

Com quase seis mil seguidores em sua fanpage, o Deixe ela em Paz nasceu de conversas entre as amigas Joana Pires e Manuela Gallindo, que queriam "reforçar  essa preocupação com a outra". Foto: Manuela Gallindo/La Ursa
Com quase seis mil seguidores em sua fanpage, o Deixe ela em Paz nasceu de conversas entre as amigas Joana Pires e Manuela Gallindo, que queriam "reforçar essa preocupação com a outra". Foto: Manuela Gallindo/La Ursa
 

Sororidade. A ideia de um pacto de proteção e acolhimento entre mulheres ganhou força com o feminismo contemporâneo no Brasil, sobretudo no ano passado, quando as discussões sobre gênero ocuparam as redes sociais e os lares. No país que registra um estupro a cada 11 minutos e onde 13 mulheres morrem violentamente todos os dias, acabar com a rivalidade entre elas não só desarticula um dos mais fortes alicerces do patriarcado, mas se coloca como estratégia de sobrevivência.

A antropóloga Cecília Patrício explica que essa disputa entre mulheres é algo que sempre existiu, embora fosse mais sutil enquanto as relações eram mais desiguais e os espaços e papéis melhores definidos. Ela acredita, no entanto, que as mulheres acabavam odiando outras em nome da tentativa de segurar seus parceiros, e ilustra com a relação entre senhoras das casas grandes e as escravas que se envolviam com os senhores.

Entender que essa rivalidade era uma forma de fazer com que as mulheres repetissem comportamentos que não lhe beneficiavam enquanto grupo, classe, foi o que despertou o interesse da fotógrafa Joana Pires, 30, em dialogar com elas. Em 2015, Joana criou, junto com a amiga Manuela Gallindo, o movimento Deixa Ela em Paz, que espalha cartazes em diversas cidades brasileiras, e cuja página no Facebook é seguida por quase 16 mil pessoas.

A proposta, que nasceu de provocações e reflexões dos diálogos entre ambas, era construir um recado claro, que comunicasse de forma direta, inspirado por pesquisas sobre o universo feminista. "A frase surge de conversas, da necessidade muitas vezes de pedir que sejamos deixadas em paz. No nosso dia a dia a gente queria reforçar essa preocupação com a outra, que vem muito da sororidade, uma ideia ficou mais clara para nós a partir do ano passado", comenta a fotógrafa.

Uma por todas, todas por uma
"A sororidade é a chance de transformação do que a gente vem lutando para mudar há tanto tempo. Há muito tentamos fazer com o que os homens compreendam o machismo e lidem de forma mais humana, para que entendam que, de alguma forma, também é opressor para eles. Mas acho que, mais recente, com a primavera das mulheres, entendemos que a chave dessa transformação social é a mulher conversar com outra mulher, se apoiarem, se entenderem como pessoas que não estão em competição, mas que podem fazer uma transformação social muito significativa", explica.

"Nas nossas pesquisas, nos deparamos com situações em que a mulher é tratada como se fosse louca, em que contextos são criados para que ela duvide de si mesma ou, no ambiente do trabalho, às vezes ela é interrompida em seu discurso para que não seja levada a sério. Fomos percebendo como era importante que a gente se apoiasse para tentar combater isso tudo e para que mais mulheres se dessem conta do quanto estão submetidas a essas realidades", comenta a fotógrafa, que não acredita tratar-se de um novo feminismo, mas fala em um novo momento. "A gente entende que esses canais possibilitam que mulheres compartilhem realidades semelhantes e se identifiquem nesse processo".

Rivalidade: uma construção histórica
A antropóloga Cecília Patrício ressalta que a rivalidade entre mulheres vem desde os tempos do Brasil colônia, quando nasceu a dicotomia 'puta e pura'. “Tinha a mulher, mãe e dona de casa e a mulher da rua. Dois esteriótipos bem fortes para a mulher colonial. E elas encaravam esses esteriótipos e agiam com força diante de qualquer ameaça. Muitas vezes entendo essa inimizade entre mulheres como uma questão de conquista, luta de forças de quem pode conquistar e manter mais e melhor aquele homem. Já eles têm mais autoestima, por serem machos", explica a antropóloga, que acredita numa relação com a natureza masculina, mas aponta sobretudo a formação das pessoas. "Veja os brinquedos de meninos e meninas. Os deles são de poder, engenharia, força, atitude. Os de meninas são de contos de fadas, princesas, reinos que não existem, panelas, que remetem o ideal de cuidado que se impõe que a conheça saiba", comenta.

Para Cecília Patrício, essa disputa feminina cresce com o capitalismo, quando as mulheres passam a disputar a sobrevivência e a se inserirem no mercado de trabalho. "Elas trabalhavam na mesma coisa e ganhavam bem menos que eles, então, pensar essa disputa é pensar a própria formação da mulher e também sua inserção na qualificação", aponta. A partir desse pensamento, afirma a antropóloga, é possível entender a própria construção do machismo. "Na verdade, a história é construída pelos homens. O direito, a filosofia, as revoluções, a construção da documentação e dos esquemas políticos, da ciência. Tudo isso vem legitimar uma conformação da mulher, que se aceita nessa condição de inferioridade e não o vê como culpado, como se fosse natural, quando é cultural", explica.

"Mas isso vem mudando. Veja a quantidade de divórcios hoje, porque tem mulheres que não admitem serem postas num lugar inferior. Há um movimento crescente. Um exemplo é a Marcha das Vadias, mulheres juntas, que tiram a blusa reivindicando direito ao próprio corpo, mostrando que o corpo é delas e que fazem o que querem, longe do controle do marido, do filho, do médico, dos religiosos ou do olhar da amiga".

Orgulho diante do espelho
A conquista da autoestima é um passo fundamental para deixar de lado a insegurança – seja em relação a si própria, seja na relação com outras mulheres. Pensando nisso, a estudante de fotografia Juliana Bandeira, 22 anos, idealizou e pôs em prática o projeto Espelho Meu, que propõe um mergulho na beleza feminina. A ideia é livrar as mulheres da “cegueira” imposta pelo padrão de beleza massificado, mostrando a elas - e ao mundo -a beleza que existe em todas as mulheres.

Do início da produção dos ensaios fotográficos, no final de 2014, até agora, 15 mulheres já participaram dos projeto, que disponibiliza as fotos, parcialmente, no Instagram do Espelho Meu, e que devem compor uma exposição, depois de sua apresentação como trabalho de conclusão do curso da autora. Para Juliana Bandeira, a quem o projeto também proporciona mergulhos nos universos alheios, o desafio é captar as belezas individuais.

"As vezes, elas mesmas falam sobre problemas que têm com o corpo. Uma mulher, por exemplo, me pediu para fotografar uma supercicatriz, que as pessoas acham feia, mas que ela acha importante. É interessante porque, no começo, elas não ficam tão à vontade, mas depois se soltam. Quando mando as fotos de volta, elas falam: 'nunca percebi meu corpo dessa forma', e começam a perceber que até suas imperfeições são bonitas", comenta a autora do projeto, que acredita na arte como forma de empoderamento. “Com o projeto, as mulheres se olham no espelho e se descobrem, perdem um pouco a noia com o corpo, entendendo a importância de se amar", comenta Juliana Bandeira.

Mães com independência financeira

A empreendedora social paulistana Manoela Gonçalves estava em um posto de saúde com o filho - que havia comido um pedaço de frango estragado, dado pela babá - quando resolveu que não ia mais terceirizar sua maternidade para trabalhar para os outros. Diante do hospital lotado de mães e da frustração de não ter com quem dividir o peso dessa responsabilidade, nasceu a ideia de criar um espaço voltado às mães autônomas, o Casa das Creoulas.


Desde 2012, o imóvel de três cômodos na periferia de São Paulo vem recebendo mulheres de todo o país, que queriam conhecer e colaborar com a casa de acolhimento, que conta com oficinas diversas, eventos culturais e biblioteca. Após um boicote da imobiliária, a Casa das Creoulas mudou de endereço e instalou-se no Butantã. Este ano, o coletivo lançou uma vaquinha virtual para agilizar uma reforma no novo endereço e proporcionar a retomada das atividades, que vão desde happy hours até oficina de mosaico e aromaterapia.

"Tudo esbarra na questão financeira, porque muitas mulheres não podem colaborar e a ideia também é que essas atividades proporcionem alguma renda a elas. O sonho da Manoela reverberou em outras mulheres, que queriam também estar mais próximas e muitas vezes não podem, porque são sozinhas. Hoje somos cinco mulheres e seus filhos, que apoiam no funcionamento e organização do espaço e das ideias", conta Manoela Gonçalves, que também vê no projeto capacidade de transformar as mentes ao seu redor.

"Me emociono todo dia quando vejo que uma mulher conhece outra, se tornam parceiras e acabam, por exemplo, abrindo um novo atelier. Ter um espaço feminino é raro, então é um espaço de resistência e é muito bom deixar a porta da casa aberta para que uma mulher a mais a conheça", conta a idealizadora, que também vê o projeto como uma forma de empoderar mulheres.

"Uma coisa importante é o nome mãe solteira. É tão pejorativo e não era para ser. Então, tem o movimento nosso de dizer 'não me chame de mãe solteira, eu sou mãe autônoma' o que nos coloca no lugar de força onde de fato estamos", reflete.