O Norte Escritório recifense de arquitetura vai representar o Brasil na Bienal de Veneza Projeto da Escola Novo Mundo, construído no Coque, sintetiza a excelência da sintonia entre vocação arquitetônica e aspirações comunitárias

Publicado em: 11/04/2016 18:15 Atualizado em: 12/04/2016 17:35

Dois aspectos centrais e antagônicos foram observados no projeto: abertura (ventilação e iluminação internas) e fechamento (vandalismo e violência externas). Foto: O Norte Oficina de Criação
Dois aspectos centrais e antagônicos foram observados no projeto: abertura (ventilação e iluminação internas) e fechamento (vandalismo e violência externas). Foto: O Norte Oficina de Criação
 

Uma intervenção comunitária notável com alta qualidade de desenho arquitetônico. Assim pode ser apresentada a Escola Novo Mangue, construída na comunidade do Coque, no Recife, no início dos anos 2000. O projeto, elaborado pelo escritório O Norte, é um dos 15 – o único do Norte e Nordeste – selecionado para o pavilhão do Brasil da 15a Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza, que começa em maio. Inspirada no tema 'Reporting from the front' (Relatos do front), a edição coloca em pauta o papel social do arquiteto, seu ativismo e a capacidade de atuar em transformações que vão além do espaço físico.

Foram os próprios moradores do Coque que escolheram uma escola primária quando, no final da década de 90, a ONG Umbuganzá captou recursos para construção de um equipamento na comunidade. No terreno cedido pela prefeitura, onde o mangue definhava e cadáveres eram diariamente “descartados”, hoje estudam 385 crianças até o 5° ano, além de turmas de Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJA). Responsável pelo projeto, que demandava atenção redobrada pelas peculiaridades relacionadas a vulnerabilidade social da área, o trio de arquitetos que compõe o escritório (Lula Marcondes, Francisco Rocha e Bruno Lima) foi escolhido em um concurso, também com aprovação dos moradores do Coque.

 

Salas de aula foram "rasgadas" com janelas no teto, onde uma espécie de renda de tijolos cria uma estrutura porosa, que permite a circulação do vento e da luz.Foto: O Norte Oficina de Criação
Salas de aula foram "rasgadas" com janelas no teto, onde uma espécie de renda de tijolos cria uma estrutura porosa, que permite a circulação do vento e da luz.Foto: O Norte Oficina de Criação
 

Na construção do desenho do imóvel, dois aspectos centrais – e de certa forma antagônicos – serviram de orientação: o prédio deveria ser ventilado e iluminado naturalmente, atendendo a um pedido dos moradores, mas janelas e portas evitadas para dificultar furtos, vandalismo e o acesso de traficantes às crianças, por orientação da Prefeitura.

A solução encontrada pelo grupo foi rasgar as salas de aula para o céu, colocando as janelas no teto, ao invés das paredes, onde uma espécie de renda de tijolos foi feita,criando uma estrutura porosa, que permite a circulação do vento e da luz. “Toda sala tem um jardim interno porque uma das premissas do projeto era a alta performance ambiental com poucos recursos. Você olha a escola e ela parece uma pedra de barro, de tijolo aparente, porosa, sem janelas”, explica o arquiteto Lula Marcondes, que vê o projeto como “simples e verdadeiro”.

Elemento de transformação social
Marcondes, que acredita que as cidades passam pela prancheta do arquiteto urbanista, admite que a segregação, as divisões e o esquecimento também passam pela universidade. Para seu sócio, o arquiteto Bruno Lima, o perfil do curso de graduação do estado acaba incutindo na cabeça dos estudantes que a profissão consiste em construir paredes. Ele aponta os encontros e congressos da área como responsáveis pela formação mais atenta às questões sociais do trio.


Para Lula Marcondes, Francisco Rocha e Bruno Lima, sócios no escritório O Norte, ser arquiteto não é construir paredes. Foto: Karina Morais/DP
Para Lula Marcondes, Francisco Rocha e Bruno Lima, sócios no escritório O Norte, ser arquiteto não é construir paredes. Foto: Karina Morais/DP

"É inerente à nossa formação e vida. Individualmente, no nosso escritório, não incorporamos a ideia de que ser arquiteto é construir paredes; entendemos que é possível aplicar o sentido de planejamento e composição em diversas áreas e isso sempre nos norteou, por isso nos envolvemos com música, artes plásticas, além de uma ação pedagógica, nem que seja abrindo o escritório para estudantes", comenta Bruno Lima, que confessa ter ficado surpreso com o convite para bienal de Veneza. "A gente tende a achar que são selecionados projetos grandiosos, obras-primas, e a bienal ressignifica isso um pouco. Tira a arquitetura daquele papel de que não se pode mexer e vira algo como elemento de transformação social. A escola é isso, ela não seria nada sem a comunidade", comenta.


Foram os próprios moradores do Coque que escolheram uma escola primária quando uma ONG captou recursos para construção de um equipamento na comunidade. Foto: O Norte Oficina de Criação
Foram os próprios moradores do Coque que escolheram uma escola primária quando uma ONG captou recursos para construção de um equipamento na comunidade. Foto: O Norte Oficina de Criação

Washignton Fajardo, da Fundação Bienal de São Paulo e curador da participação do Brasil na mostra, explica que o tema geral inspirava a mostrar justamente iniciativas nas quais a sociedade civil trabalha com o arquiteto, fazendo uma crítica a ideia de que este está acima da sociedade, uma ideia da modernidade. "Também procurei arquitetos que eu sei que têm uma prática comprometida com a esfera pública. É importante deixar claro que ninguém é obrigado a isso, as pessoas têm que fazer o que der na cabeça delas. Não acho que quem se dedica às questões sociais é melhor, mas procurei os que tinham essa atenção na sua prática de desenho, porque acho que são importantes", argumenta.

Mais do que projetar, mais do que construir

O curador Washignton Fajardo não poupa elogios ao escritório pernambucano: "O Norte faz um trânsito, comunica-se com a cultura e outras áreas. Talvez o que eu vá falar seja pesado, mas acho que os escritórios dedicados somente ao ato de projetar e construir num processo linear estão fadados a ficarem para trás. É preciso ampliar o campo de atuação do arquiteto e O Norte faz isso há muito tempo", comenta.


No terreno cedido pela prefeitura, onde o mangue definhava e cadáveres eram "descartados", hoje estudam 385 crianças. Foto: O Norte Oficina de CriaçãoFoto
No terreno cedido pela prefeitura, onde o mangue definhava e cadáveres eram "descartados", hoje estudam 385 crianças. Foto: O Norte Oficina de CriaçãoFoto

A mobilização social que acontece na escola do Coque é, para o arquiteto Francisco (Chico) Rocha, parte de sua magia. "O Coque foi uma comunidade protagonista no estabelecimento das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), que exigiu fazer parte do patrimônio da cidade, e a escola é parte simbólica disso", aponta. Marcondes defende que, no momento atual, é preciso estar ativo e diz que ficar parado assistindo, te faz parte do problema. "Mesmo que você esteja no escritório, voltado para outro tipo de clientela, tem condição de, dentro do seu tempo, dar um retorno a outros setores desassistidos, isso é historicamente necessário", defende.

Para Bruno Lima, episódios como a construção do projeto Novo Recife no Cais José Estelita ajudam a ampliar as discussões sobre o papel do arquiteto. "O Estelita força a sociedade a se rever e faz o mesmo com o arquiteto. Cria essa demanda, o arquiteto não é só o que faz o edifício reluzente espelhado, o que ele faz gera impacto no entorno, na vida das pessoas. Na verdade, ele é parte de uma grande cadeia, sua participação é primordial", diz.

Vitrine de luta e resistência em movimentos importantes no cenário nacional, Recife inspirou a política de desenvolvimento urbano e de planejamento nacional das Zeis, conta Chico Rocha, que acredita que essa tendência segue até os dias de hoje. "Falando em movimento social, a cidade é muito marcada por um passado duro, de relações difíceis, de gênero, raça. Mas também é um lugar de onde tem saído as respostas, as soluções. Mesmo que o cenário não seja o ideal", avalia. Para ele, não é só o arquiteto que precisa ter consciência de sua função social. "Acredito que isso é para todos que se dispõem a viver em grupo."