As ausências são múltiplas na vida da diarista Viviane Silva, 31 anos. O sorriso é quase sem dentes. A casa mal tem paredes e cômodos. Com frequência, falta dinheiro. Mas se tem algo que suplanta as dificuldades, é o orgulho de ter comida sempre à mesa. Se a alimentação é a força tenaz de ligação entre os seres humanos e a natureza, como descreveu Josué de Castro, é também um elo de reencontro com a cidadania. Em Pernambuco, em plena Década de Ação pela Nutrição, instituída do ano passado até 2025 durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), projetos sociais têm usado a potência do alimento para transformar a realidade de pessoas como Viviane.
A fome foi, durante décadas, pano de fundo da miséria no Brasil, símbolo do descaso social e econômico. Entre meados de 1980 e 1990, o país amargava 25 milhões de subalimentados. Faltava alimento e dignidade à mesa. Há três anos, a nação ostenta a saída do Mapa da fome da ONU, com um residual de 1,7% da população na condição de subalimentada. Na prática, são cerca de três milhões de pessoas sem ter comida diária. Entre os corredores da periferia e na distância dos interiores, a fome ainda reside.
Em Pernambuco, dados inéditos e preliminares da 4ª Pesquisa estadual de saúde e nutrição mostram que na última década houve redução nos percentuais de baixo peso para idade (de 3,2% para 1,7%), baixa estatura para a idade (8,7% para 7,6%) e baixo peso para altura (1,9% pata 1,7%) em crianças menores de cinco anos. “É uma indicação de que a desnutrição está diminuindo e sendo controlada”, afirma o pesquisador e docente do Imip Malaquias Batista Filho. Por outro lado, um panorama controverso sinaliza o crescimento do sobrepeso, indiscriminando classe social. Com ele, vêm junto as doenças crônicas não transmissíveis, responsáveis por 70% das mortes anuais no país.
O desafio atual é equilibrar a gangorra e, para isso, o caminho apontado por especialistas é combater a insegurança alimentar (presente em 26% dos domicílios pernambucanos). “É necessário o reconhecimento de que a segurança alimentar e nutricional se constitui em um direito humano. Então, ela traduz-se na capacidade de superação das dificuldades de acesso, físico e econômico, ao alimento adequado”, afirma a coordenadora do Programa Nutrição e Ecologia por uma Cultura de Paz da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Jailma Monteiro.
Viviane recebe frutas e verduras do telhado verde da Comunidade dos Pequenos Profetas. Já frequentou mais de 40 aulas de culinária para aprender a incorporar ao cardápio rúcula, alho-poró e abobrinha. Já escolheu o prato preferido, macarrão de cenoura, e deu um jeito de tirar fotocópia da receita para distribuir na vizinhança. Mais de 30 cópias enraizadas nos almoços dominicais na Favela do Papelão, centro do Recife. É o verso e o reverso da cidadania que começa no prato.
NOVOS SABORES E CORES NA FAVELA DO PAPELÃO
É como uma prova de resistência que as folhas se ramificam e colorem os cinzentos corredores da favela espremida entre a estação Central do Recife e as margens do Rio Capibaribe. Do mesmo chão por onde escorre esgoto e o lixo se acumula, nasce o coentro disputado na Favela do Papelão pelos moradores. As garrafas pet cheias de mudas penduradas em pregos batidos na tábuas dos barracos são, ao mesmo tempo, um contraste com a pobreza circundante e um horizonte de cidadania para um dos bairros mais carentes e vulneráveis do Recife.
Quase nenhum morador do Coque e arredores conhecia o poder da rúcula quando a Comunidade dos Pequenos Profetas (CPP) iniciou o projeto de hortas verticais a partir de garrafas de plástico, há sete anos. A ideia era fomentar a consciência ambiental e promover a acessibilidade à alimentação. Ao longo dos anos, foi recolhida mais de um tonelada de garrafas plásticas. A maior mudança, entretanto, ocorreu na relação da população com os hortifrutis e a própria autoestima. Não à toa, o projeto reverberou-se em um telhado verde, inaugurado em outubro passado em plenos sobrados do Centro do Recife.
Do alto do telhado, são colhidos alface, alho-poró, rúcula, manga, sapoti, pitanga, alface chilena e americana, e repolhos diversos. Parte alimenta a população de rua atendida ao longo do dia dentro da CPP, parte segue para entregas periódicas aos moradores do entorno. O plantio e a colheita de frutas e verduras são realizados pelos próprios moradores, que têm aulas para aprender a manipular e criar receitas. O macarrão de cenoura e abobrinha, hoje sensação nas refeições da Vila Sul, Joana Bezerra, Coque e Papelão, é fruto desse aprendizado.
“Todo mundo tem o direito de comer bem e com qualidade. Quem come mal se enxerga mal. A partir do momento em que a pessoa se enxerga bem, a autoestima começa aumenta e ela tem outras possibilidade de sobreviver e garantir a cidadania e o direito alimentar”, observa o fundador do CPP e gastrônomo, Demetrius Demetrio. “Há uma relação entre comer e viver muito íntima e presente na vida de todo ser humano. Dessa forma, a comida é muito mais que um meio de subsistência. É cultura, educação, preservação e mudança”, detalha a presidente da Fundação Cargill, Valéria Militelli.
Embaixo de um varal improvisado de roupa, em uma rua esburacada e sem asfalto próxima à linha do metrô, o canteiro da atendente Paula Costa, 34 anos, é prova da força da natureza. Há quase um ano, ela convidou um vizinho para juntar cimento e tijolos e montar o espaço onde cultiva, com orgulho, pimentas, folha de mostarda, rúcula e alface. Paula foi instigada pelas hortas verticais e decidiu levar adiante a própria ideia depois de socorrer a filha, Alexsandra Marcela que aos dois anos pesava 20 kg e sofria de hipertensão.
“Deixava ela com as irmãs para ir trabalhar. A comida era coxinha, batata frita e refrigerante. Quando vi minha filha sentada lá no projeto, puxando um prato de salada, comendo mesmo, vi que podia mudar a alimentação dela”, conta. A história de Marcela está na balança do paradoxo alimentar brasileiro, no qual a desnutrição convive com índices alarmantes de sobrepeso.
O Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e Caribe, elaborado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), mostra que a obesidade é realidade para 20% dos adultos brasileiros. O sobrepeso atinge 56% da população, 7,3% das crianças com menos de cinco anos. “Estamos passando pelo conceito de transição epidemiológica. É preciso que as ações passem a considerar os dois cenários”, ressalta a presidente da Associação Brasileira de Nutrição (Asbran), Daniela Fagioli Masson.
O futuro de Marcela poderia estar fadado às estatísticas das Doenças Crônicas Não Transmissíveis não fosse o verde brotando na porta de casa. Desde a introdução dos hortifrutis e do acompanhamento médico, a menina perdeu 5kg. A mãe perdeu 15kg. A vizinhança agora discute as funções das hortaliças com a mesma frequência na qual fala de amenidades cotidianas. Do teto orgânico ao solo barrento, a autonomia alimentar vai preenchendo as lacunas da miséria na Favela do Papelão.
NADA DE AGROTÓXICOS EM SANTO AMARO
É uma relação íntima a da agricultora Chirlene Silva, 33 anos, com a terra. Com a mesma intensidade da qual fala dos filhos, os olhos dela brilham ao mencionar o cultivo. Nascida e criada entre as lavouras do Sítio Feijão, em Bom Jardim, Chirlene parece transcender a emoção de plantar e colher na qualidade dos próprios alimentos. A água de coco extremamente doce e o rabanete bem roxo vão primeiro para a mesa de casa, encher a barriga da família, depois saem em direção às feiras agroecológicas do Recife.
Uma das premissas do Guia alimentar para a população brasileira (2014) como instrumento de promoção de saúde e qualidade de vida é impulsionar o consumo de alimentos in natura, aqueles destinados ao consumo sem alterações após serem retirados da natureza. Desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, lembra a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). São um bilhão de litros por ano de substâncias com potencial de causar convulsões, cânceres, dermatites, lesões renais e mal de Parkinson, para não alongar a lista.
A estratégia defendida entre os especialistas para minimizar os danos causados pela ingesta de alimentos contaminados é a agroecologia. “A produção livre de agrotóxicos dialoga com a sociedade, o consumo, o meio ambiente. É um produto que favorece a vida das famílias agricultoras”, explica o assessor técnico do Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá Júlio de Paula.
Produção essa cujo excedente é vendido nas feiras de orgânicos. As feiras estão em fase de pulverização nos centros urbanos, o desafio é torná-las acessíveis. “Há um mito de que os orgânicos são mais caros, mas realizamos pesquisa e mostramos que os produtos conseguem ser em média 33% mais baratos se comparados aos de supermercado”, exemplificou Júlio de Paula.
Responsável por mobilizar uma rede de 204 famílias e seis associações de agricultores, o Centro Sabiá tem provado a possibilidade de tornar acessível o alimento orgânico. Há um ano montou uma feira agroecológica no bairro de Santo Amaro para democratizar os orgânicos às comunidades de baixa renda.
A feira de Santo Amaro começa às 7h e deveria durar três horas, mas em metade desse tempo boa parte dos produtos já foi vendida. A população chega cedo e fica nos bancos da praça esperando as barracas serem montadas. Há muitos compradores de bairros de classe média, mas a presença da população local é sentida em uma passada de olho rápida. “Ser próximo de casa facilita a nossa compra”, explica a representante comercial Ivaneide Souza, 59.
Um dos orgulhos de Chirlene são os filhos, de 13 e 6 anos, nunca terem provado leite industrializado. Cerca de 90% da alimentação da casa são plantados e colhidos ali mesmo, nas cercanias. O excedente ela e o marido colocam em um carro, acordam antes dos raios do Sol e levam, toda quarta-feira, para a feira de Santo Amaro. A renda da família triplicou. “Consigo me alimentar bem e sem me preocupar de o dinheiro faltar no fim do mês para comprar as coisas para os meus filhos”, conta
MARISCADA, SÍMBOLO DE UMA TRANSFORMAÇÃO
O cheiro de maresia está no ar, como um marcador de saudação aos visitantes. É fim de tarde na Ilha de Deus, comunidade incrustada no Parque dos Manguezais do Recife. Famílias inteiras estão reunidas em frente às casas, rodeando um tabuleiro manchado de lama. As mãos rápidas movimentam as conchas de sururu e marisco. Fazem a limpeza, a despeito do intenso tráfego de carrinhos de mãos trazendo mais caixas. A relação dos moradores da ilha com a natureza circundante é perene e contínua. A fonte de trabalho de 90% dos habitantes do lugar é também a garantia de prato cheio, mesa farta, para gerações inteiras. E o alimento que outrora matou a fome de uma comunidade esquecida hoje é símbolo da transformação.
Os rios Beberibe, Tejipió e Jordão são as fronteiras dos dois mil moradores da Ilha de Deus, dos quais cerca de 40% saem às águas todos os dias esperando voltar com baldes e redes cheias. Em terra firme, outra parte aguarda para pintar as mãos de lama e tratar o alimento. Rotina determinada pela maré e não pelo relógio. Na época em que a comunidade carecia de saneamento e as formas de moradia predominante eram as palafitas, também faltava dinheiro para diversificar a alimentação e parte da pesca ficava ali mesmo, nos pratos da comunidade.
Carne vermelha era exceção, luxo dominical, lembra a cabeleireira Geisiane de Ataíde, 28 anos. Memórias de um passado difícil, mas que nunca contemplou um prato vazio. “Na Ilha de Deus ninguém passa fome. Aqui o povo é barriga cheia. Se não tiver carne, come camarão, siri, caranguejo”, orgulha-se. A pesca e limpeza do marisco e sururu fizeram parte do cotidiano de Geiseane até os 17 anos.
Há 10 anos, a Ilha começou a ser urbanizada, ganhou status de cuidado e atenção do poder público. As opções de comida se diversificaram à mesa, a autoestima da população cresceu e a Ilha é hoje definitivamente um ponto no mapa da cidade. A adolescente que saía para pescar é agora a sorridente Geise Negra Linda, responsável por juntar marisco, camarão, requeijão e o tempero do orgulho de ser nascida e criada na Ilha para fazer a mariscada mais falada dos últimos meses no Recife.
Desde a chegada dos passeios de catamarã à Ilha de Deus, os sábados são sempre lotados na comunidade. Chegam cada dia mais turistas, comemora Geise, que agora precisa se virar entre as vendas de produtos de beleza, o serviço voltado aos cabelos e a produção da mariscada. Para dar conta do prato, o trabalho começa um dia antes. Os ingredientes são todos adquiridos na própria comunidade, inclusive as hortaliças.
A escola de remo, o centro de artesanato, a ponte Vitória das Mulheres, o roteiro pela Ilha culmina no Centro Educacional Popular Saber Viver, onde a mariscada é servida a R$ 10. Aos interessados, também é possível agendar para provar o prato por R$ 25 por pessoa, para grupos a partir de seis. O passeio de catamarã custa R$ 55 por pessoa e tem duração média de duas horas.
A rotina permanece puxada na Ilha de Deus. Há carência de iluminação adequada em muitas residências. É preciso recuperar a vegetação retirada após o projeto de requalificação, o único dinheiro que aporta os projetos sociais hoje é fruto de investidores alemães. As tardes de muitos moradores, inclusive crianças, ainda é dedicada a limpar conchas para ganhar R$ 7 por balde. Mas quando chegam em casa e abrem a geladeira, hoje muitos deles já podem decidir entre marisco e carne vermelha. Nunca passar fome foi sorte. Ter opção, um privilégio adquirido
SALADAS NA CASA DE QUEM UM DIA PASSOU FOME
Enquanto posa para a sessão de fotos desta reportagem, Janaína Silva, 35 anos, não disfarça a inquietação. Está preocupada com o horário de almoço dos filhos Cláudio Henrique, 11 anos, e Cauã Arthur, 10. A ex-vendedora de água mineral em semáforos da Zona Norte do Recife sabe o valor de uma refeição e não quer desperdiçar a oportunidade de proporcionar uma mesa farta aos meninos. Janaína passou fome, sentiu o cheiro da comida feita na casa vizinha enquanto o estômago ardia em dor. Hoje é uma das funcionárias do Saladorama, um delivery social cujo objetivo é democratizar o acesso à alimentação saudável para populações carentes.
Morador do subúrbio do Rio de Janeiro, o fundador do Saladorama, Hamilton Silva, percebeu que alimentação saudável era um conceito de elite e estudando descobriu mais, havia uma indústria precificando os produtos deste mercado. Bateu o pé e decidiu lutar contra isso. Criou um delivery de saladas cujos produtos são comprados da comunidade sede e vendidos a preços acessíveis na própria região. Para os moradores, é cobrado de R$ 5 a R$ 18. Quem é de fora do bairro paga de R$ 7 a R$ 22.
O negócio cresceu e hoje está presente no Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Maranhão e no Recife, no bairro de Nova Descoberta. Janaína, moradora de uma casa em terreno de invasão, à beira de uma barreira no Vasco da Gama, trabalha no negócio social há um ano. Depois das fotografias, ela seguiu apressada para casa com as saladas na mão. Chegou diante do sorriso aberto dos filhos e se prostrou diante do fogão, a preparar os cortes de frango. Só sossegou depois de montar a mesa e assim pode contar a própria história.
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“Comecei a trabalhar muito cedo, aos 12 anos e não parei. Minha mãe ensinou assim: a gente come o que tem. Se não tiver, fica com a barriga doendo. Às vezes, chegava em casa e só tinha água e sal, cuscuz e água. Hoje eu sou feliz através disso, pelo que já passei e não vejo meus filhos passando”, justificando a própria pressa. Ao lado da residência dela, entre entulhos de uma construção soterrada pelo barro, o vizinho planta coentro, jerimum, mamão e quiabo, para distribuir entre os amigos e vender o excedente.
A semente da alimentação de qualidade já foi plantada em Nova Descoberta, mas o Saladorama percebeu um detalhe. Alimento é antes de tudo contexto social. Por isso, agora trabalha para promover a vida saudável no bairro. “O morador da Zona Sul termina de comer a salada e desce para correr na orla. E o daqui? Não há espaço para prática de esportes, por exemplo. É preciso gerar a cultura para criar a demanda. Transformar em hábito”, exemplifica Hamilton.
Eles estão criando uma creche cujo cardápio é completamente orgânico, vão reativar o Centro Social Urbano do bairro, realizar capacitações com as donas de casa e criar um restaurante comunitário para que os próprios comerciantes vendam os alimentos em esquema de rodízio. A meta é alta e o horizonte para finalizar os projetos é o fim de março.
ENTREVISTA
TUDO SE TRANSFORMA PARA GERAR QUALIDADE DE VIDA
Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Era sobre a reação do oxigênio com outros elementos químicos a que Lavoisier se referia ao sentenciar o princípio da conservação das massas, há 240 anos, mas também poderia ser sobre a cozinha da autônoma Maria José Pontes, 61 anos. O cardápio na casa da Índia, como é conhecida no bairro de Santo Amaro, varia conforme as “sobras”. Casca de banana vira bife a milanesa, talo de coentro integra as receitas. Aproveitar integralmente os alimentos é mais que garantir barrigas cheias em casa, significa contribuir para reduzir o desperdício de alimentos.
A estimativa é de que cerca de 30% dos alimentos comprados para uma residência no Brasil sejam desperdiçados. Se uma família cuja renda mensal é R$ 2 mil conseguisse reduzir esse desperdício para 10% e colocasse o valor gasto com os outros 20% em uma poupança, em 70 anos iria conseguir juntar R$ 1 milhão, de acordo com cálculo do Instituto Akatu. O desperdício de alimento do planeta poderia ser concentrado em um país, cujo consumo de água seria o maior dentre todas as nações e o de emissão de carbono, o terceiro no ranking.
“No Brasil, o número de subalimentados é de 3,5 milhões. Se o desperdício não existisse, a disponibilidade de alimentos cresceria muito, os preços cairiam e aqueles com menos posse teriam melhor condição de comprá-los”, analisa o diretor presidente do Instituto Akatu, Helio Mattar, que já foi membro do Conselho de Consumo Sustentável do Fórum Econômico Mundial.
Maria José aprendeu o valor nutricional das cascas em cursos oferecidos na comunidade pelo Instituto Fecomércio e sai repassando o conhecimento entre as vizinhas. “Aproveito tudo, parece mentira, menos o miolo do pimentão. Raiz de coentro dá um sabor, um aroma tão grande na comida”, ensina. “As cascas têm um potencial nutricional grande, são fontes de vitaminas, sais minerais, fibra, que auxilia na digestão, no trânsito intestinal”, explica a nutricionista e instrutora da Unidade de Hotelaria e Turismo (UHT) do Senac Helen Lima.
O aproveitamento integral dos alimentos é uma forma de reduzir o desperdício. A outra é a doação. Em Pernambuco, é possível integrar trabalhos coletivos de combate ao desperdício. Na Central de Abastecimento e Logística (Ceasa/PE), onde são vendidos por mês 80 mil toneladas de produtos, 100 toneladas mensais são doadas ao programa Sopa Amiga. As hortícolas são separadas e cerca de 55% são reaproveitados na produção de sopa, distribuída para 53 comunidades do Grande Recife.
O que iria para o lixo acaba saciando a fome de vida das duas mil famílias atendidas por locais como o Clube de Mães dos Moradores do Alto do Refúgio, na Zona Norte. Toda a alimentação preparada no clube advém de doações: da Sopa Amiga, do Banco de Alimentos do Sesc e também de colaborações individuais. Parte é distribuída sob o critério de renda, parte é consumida nos dois lanches, servidos no contraturno escolar.
O cardápio, assim como na casa da Índia de Santo Amaro, é flutuante. Depende do arrecadado. A segurança proporcionada pela comida na mesa é expressa em sorrisos idênticos da idosa ao bater a faca para transformar casca em bife e das crianças colherando o prato de sopa depois de gastar as energias na aula de frevo.
CANTEIROS OCUPADOS NA MUSTARDINHA
O sorriso já não fazia parte da rotina da dona de casa Silvia Silva, 67 anos, quando a horta orgânica aportou em um terreno quase abandonado ao lado do escritório da Secretaria de Saneamento (Sanear), na Mustardinha. A ocupação do espaço com canteiros em outubro do ano passado visava minimizar o descarte irregular de entulhos e também o uso de drogas no entorno. A comunidade escolar e a associação de idosos do bairro foram convidadas ao cultivo. A partir de um porta-a-porta, a iniciativa também chegou à residência de dona Silvia. Três meses depois, o semblante triste é marca do passado.
Depois da resistência inicial, Silvia é hoje uma das vizinhas mais atuantes da horta. Aproveitou-se do passado de agricultora nas Alagoas para ensinar aos demais o cuidado com cada tipo de folha. Ela acorda ainda com os primeiros raios de sol e corre para a horta.
“É mesmo que uma criança. Precisa cuidar, aí elas sorriem para você”, explica. Em Pernambuco, 7% da população sofrem com depressão. A promoção de uma alimentação saudável reflete na prevenção das as doenças crônicas não transmissíveis e também tem atuado no combate à depressão. A prova disso é a mudança de humor de dona Silvia.
Iniciada como projeto piloto, a horta comunitária será expandida para a bacia do Beberibe, a partir da conclusão das obras do PAC Beberibe. Um estudo já foi realizado para identificar potenciais terrenos ao longo da via marginal a ser construída. Dos 10 habitacionais, foi identificado até agora potencial para construção de horta em dois deles.
“A inclusão das hortas ocorrerá com o processo de pós-habitação. Queremos estimular o pertencimento e o empoderamento dos indivíduos”, afirma a gerente social de desenvolvimento social da Secretaria de Saneamento, Déborah Falcão.
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