RELIGIÃO Jurema sagrada segue firme na luta contra a intolerância Maior encontro de juremeiros do país acontece neste domingo

Por: Adaíra Sene

Publicado em: 23/09/2017 13:01 Atualizado em:

Kipupa Malunguinho acontece neste domingo, na Mata do Catucá, em Abreu e Lima. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP (Kipupa Malunguinho acontece neste domingo, na Mata do Catucá, em Abreu e Lima. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Kipupa Malunguinho acontece neste domingo, na Mata do Catucá, em Abreu e Lima. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP


Dizem que os saberes ancestrais curam vidas. A reza segredada onde nenhuma política pública de saúde alcança sara mazelas letais de mente, corpo e espírito. A terapia holística que cresceu das matas, muito antes das bulas, vem do sagrado encantando, dos juremeiros, filhos da fé dos povos indígenas. Está na tradição das parteiras, das benzedeiras, das curandeiras e segue viva nos terreiros. Enquanto a intolerância derrama sangue no ilê, a fumaça das ervas sobe e escreve no céu uma prece. Resistir é preciso. E é com essa missão que, neste domingo, a Mata do Catucá, cravada na Mata Atlântica de Abreu e Lima, recebe o 12º Kipupa Malunguinho.

O maior encontro de juremeiros do país espera atrair quatro mil pessoas em uma grande celebração em memória de Malunguinho. “Kipupa significa união. Agregar pessoas em prol de um objetivo. Vai ser um encontro para todas as nações, para todas as pessoas que querem se espiritualizar e encontrar o bem nas forças da natureza”, convidou o juremeiro Alexandre L’Omi Lodò, historiador, mestre em ciência da religião e um dos fundadores do evento. “Por muito tempo, a jurema foi considerada impura, secundária e sem qualificação. Era tida como um apêndice do Xangô do Recife, do Nagô e da Umbanda. Por ser, sobretudo, uma religião de pobre, foi invisibilizada. Mas, muito antes da chegada dos portugueses e dos africanos escravizados, os nossos índios já detinham os saberes da mata. De acordo com o último Censo, mais de 70% dos 1.261 terreiros da Região Metropolitana seguem também nossos ritos. É importante reunir esse povo novamente”, pontuou L’Omi.

Para quebrar esse paradigma de religião menor, o Kipupa Malunguinho vai gritar contra a intolerância. “Vamos fazer um ato de desagravo contra a violência num grande encontro de amor inter-religioso. O tema veio dos casos absurdos que aconteceram no Rio de Janeiro, onde pais de santo e mães de santo tiveram que quebrar seus objetos sagrados por causa de traficantes evangélicos. Convidamos evangélicos para lutarem com a gente, pastores anglicanos e metodistas confirmaram presença e vão ter a palavra durante o encontro”, adiantou.

Malunguinho é o herói do quilombo. Foi assassinado pela coroa portuguesa lutando pela liberdade do povo negro. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP (Malunguinho é o herói do quilombo. Foi assassinado pela coroa portuguesa lutando pela liberdade do povo negro. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Malunguinho é o herói do quilombo. Foi assassinado pela coroa portuguesa lutando pela liberdade do povo negro. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP


Pela primeira vez, o Kipupa terá um espaço com atividades exclusivas para as crianças. O Kipupinha Malunguinho terá recreação e contação de história na cadência da tradição. Através do projeto Caçando Histórias, em parceria com o Ilê Orixalá Talabí (responsável pelo 1º Encontro Nacional de Crianças de Axé), os seguidores mais novos poderão conhecer a mitologia da jurema, fortalecer sua identidade cultural, a autoestima e perpetuar os ensinamentos da mata. No passo da resistência, será fundado também, com ritual de batismo, o Maracatu Nação Kipupa Malunguinho, de Abreu e Lima. Ainda haverá apresentação do Chinelo de Iaiá, Mazurca Quixaba, Mestre Zeca do Rolete e Sambada de Jurema. 

“A jurema, para mim, é caminho, vida, o ar que respiro. Sou babalorixá há 18 anos, mas minha linhagem de jurema vem desde que me entendo por gente. Sou filho carnal de juremeiros, minha avó era juremeira, minha mãe ialorixá. Nasci dentro de terreiro. É uma energia muito forte que corre em nós. As pessoas têm que entender que a pajelança é uma cultura nossa, é indígena, é do Brasil. É preciso manter forte a tradição da nossa terra. Enquanto eu tiver forças e vibração, estarei junto lutando pela jurema”, assegurou Pai Cacau, do Ilê Axé Omó Ifá, que articulou uma caravana de juremeiros do Agreste para participar do ato deste domingo.

Como de costume, o Kipupa Malunguinho irá homenagear os sacerdotes que colaboram na resistência da jurema através do Prêmio Mourão que não bambeia. Os homenageados serão Dona Zefinha de Nanã, Mestra Alaíde Benedito Fumaça, de Caruaru, Mestre Ciriaco de Alhandra, Mãe Jerusa do Pina, Mãe Alda de Pedro Pires, Mãe Djanete de Limoeiro. Também haverá a I Feira Malunguinho de Produtos Religiosos. A ação colaborativa envolve artesãos e colocará à venda instrumentos, comidas, fumos, cachimbos e indumentárias típicas.

Simbolizado pela criança preta, Malunguinho segue vivo nos terreiros nordestinos. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP (Simbolizado pela criança preta, Malunguinho segue vivo nos terreiros nordestinos. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Simbolizado pela criança preta, Malunguinho segue vivo nos terreiros nordestinos. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP
Kipupa Malunguinho
O Kipupa é uma celebração em homenagem à memória do último líder quilombola do Catucá, o Malunguinho João Batista, que teve sua morte notificada em 18 de setembro de 1835. O líder quilombola foi assassinado pela coroa portuguesa na mata de Abreu e Lima, onde, atualmente, acontece o encontro de juremeiros. Malunguinho é o único líder quilombola do país que virou divindade em uma religião. Ele, também conhecido como Reis da Mata, simboliza a junção da espiritualidade de todos os heróis dos quilombos. Ícone da luta pela liberdade do povo negro e indígena, se tornou divindade pois, diferente de Zumbi dos Palmares, outro grande líder do movimento, vem aos terreiros e se mantém vivo através dos juremeiros.  

O Kipupa Malunguinho é uma ação do Quilombo Cultural Malunguinho. As atividades acontecerão das 9h às 18h.

XII Kipupa Malunguinho – Coco na Mata do Catucá 2017
Domingo – 24 de setembro
Engenho Pitanga II – Abreu e Lima
Entrada gratuita
 
+ SAIBA MAIS
DESVENDANDO A JUREMA

Com roupas coloridas, juremeiros saúdam a fauna e a flora da região. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP (Com roupas coloridas, juremeiros saúdam a fauna e a flora da região. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP)
Com roupas coloridas, juremeiros saúdam a fauna e a flora da região. Foto: Gabriel Melo/Esp. DP

O juremeiro acredita, essencialmente, nas entidades e divindades encantadas da jurema. Não cultuam orixás ou santos. Utilizam sempre roupas coloridas simbolizando a fauna e a flora nordestina. É uma religião para os mortos, com devoção aos espíritos daqueles que partiram e que foram importantes para a comunidade, como Malunguinho. Na religião, as entidades são pessoas comuns, do povo, com reputação polêmica, como a Mestra Paulina, que era uma prostituta do cais do Recife. Malunguinho, por sua vez, tem papel mítico. Ele é a divindade responsável pela abertura dos portões sagrados da jurema e é representado pela imagem da criança preta. É mestre, caboclo, exu e reis. Malungo é aquele que fez a travessia do Atlântico passando por todas as torturas e morreu lutando pelos negros. O último herói quilombola foi João Batista, assassinado na Mata do Catucá.  “Quando ele morreu, o quilombo acabou e deu origem às favelas de Beberibe, Dois Irmãos e Peixinhos, seguindo o braço do rio.  A jurema é, sobretudo, uma religião que nasceu antes das misturas acontecerem e que, até hoje, representa a fé do povo pobre do Nordeste”, concluiu Alexandre L’Omi L’odò.