Urbanização

Casas que resistem na Avenida Boa Viagem: entenda como residências tradicionais foram engolidas pelos prédios

Atualmente há oito casas na Avenida Boa Viagem, um dos principais cartões-postais da capital pernambucana

Publicado em: 08/07/2024 05:59 | Atualizado em: 08/07/2024 05:57

Os altos prédios luxuosos que chegam a custar milhões de reais engoliram as casas da avenida e as poucas que restam não costumam atrair os olhares de quem passa pela via pelo fato de estarem praticamente escondidas (Foto: Marina Torres/DP)
Os altos prédios luxuosos que chegam a custar milhões de reais engoliram as casas da avenida e as poucas que restam não costumam atrair os olhares de quem passa pela via pelo fato de estarem praticamente escondidas (Foto: Marina Torres/DP)
Localizada na Zona Sul do Recife, a Avenida Boa Viagem, que possui 8 quilômetros de extensão, reúne 6,5 mil edificações que obrigam as pessoas olharem para o céu, e apenas oito casas que resistiram à especulação imobiliária. Estas pertencem à Marinha e à Aeronáutica e somente duas são particulares.

Os altos prédios luxuosos que chegam a custar milhões de reais engoliram as casas da avenida e as poucas que restam não costumam atrair os olhares de quem passa pela via pelo fato de estarem praticamente escondidas.

A Avenida Boa Viagem, que completa cem anos em outubro, vai muito além de um cartão-postal da capital pernambucana e significa um sonho para muitos que desejam morar em uma das áreas mais nobres da cidade, onde o metro quadrado custa R$ 6.202, segundo dados de julho do site Proprietário Direto. 

De acordo com dados de 2018 da Prefeitura do Recife, dos imóveis construídos na avenida, 6,4 mil são residenciais e a disputa pela área é grande, fazendo com que os apartamentos sejam vendidos rapidamente até os dias de hoje.

Mas nem sempre a via esteve tomada por prédios e cercada pela especulação imobiliária. Inaugurada em 1925, a Avenida Boa Viagem já foi uma estrada sem estrutura utilizada, principalmente, por pescadores que viviam longe do Centro do Recife. 
 (Foto: Marina Torres/DP)
Foto: Marina Torres/DP

A construção da avenida valorizou as construções que já existiam na localidade e atraiu obras de infraestrutura e saneamento, o que contribuiu para o crescimento populacional das áreas do entorno e mudanças no padrão de ocupação habitacional, que se firmou nas proximidades da praia.

A inauguração da ponte Agamenon Magalhães na década de 1940 interligou Boa Viagem e o Centro do Recife, fazendo com que o bairro fosse ainda mais valorizado, atraindo capital imobiliário e construção de casas e comércios no bairro da Zona Sul. Naquela época, o crescimento estava atrelado ao grau de turismo e à especulação imobiliária.

“Depois da inauguração da ponte do Pina, o acesso à Boa Viagem ficou mais fácil. O bairro deixou de ser de veraneio para ser um bairro residencial. Em 1955, há um marco da verticalização do bairro, que é a inauguração do Hotel Boa Viagem, a construção do Edifício Holiday, além da construção dos edifícios Califórnia e do Acaiaca”, explica o historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Rômulo Xavier.

Na década de 1970, houve uma aceleração na construção de prédios com apartamentos na avenida, causando uma alteração na paisagem local e impactando a malha urbana. Além disso, o crescimento acelerado da construção deste tipo de prédio mais alto causou o sombreamento das áreas de lazer, reduziu a ventilação e afetou a erosão costeira.

Os melhores terrenos da avenida ficaram sob posse das pessoas economicamente mais ricas e afastou os moradores de comunidades da praia. Com isso, a orla de Boa Viagem começou a ser formada, os aspectos naturais da praia foram alterados e as pessoas mais pobres se mudaram para áreas de mangue e rios.

“A especulação imobiliária e a falta de espaço disponível fez com que se verticalizassem as construções no Recife. Existe uma escola de engenharia também em Pernambuco muito forte e isso também ajudou a formatar este tipo de moradia na capital”, ressalta o engenheiro e arquiteto e urbanista, Arthur Andrade.

Com a construção acelerada dos prédios houve uma redução da praia de 5,15% para 4,51%, de acordo com o artigo “Análise do uso e ocupação do solo no bairro de Boa Viagem na cidade de Recife-Pernambuco (1974-2013). Essa mudança também possui relação com o aquecimento global e foi intensificada pelas obras à beira-mar. Além disso, o imediatismo trouxe problemas de impermeabilização do solo e trânsito.

“Os prédios concentram uma quantidade maior de moradores em uma rua. Antes existiam ruas com casas com 20 ou 30 famílias e quando se constrói prédios, muitos passam a ter, às vezes, até mil famílias naquela rua. E isso, além de prejudicar a ventilação, criar ilhas de calor, poluição visual, tem a questão também do trânsito, porque se tem uma concentração populacional maior. Impacta também na infraestrutura de saneamento, por exemplo, de esgoto, de água, que precisa ser revista para atender essa demanda, que é muito maior”, explica Arthur Andrade.

Durante o processo de modernização dos imóveis no Recife, muitas famílias que viviam na Avenida Boa Viagem foram abordadas por construtoras, que estavam dispostas a pagar preços altos pelas casas para elevar prédios cada vez mais altos. Com isso, poucas residências tradicionais sobraram, algumas por estarem em terrenos da Marinha ou Aeronáutica. Uma das casas mais tradicionais que demolida foi a Casa-Navio e outras como Castelinho e Casa do Brigadeira resistem até hoje.

Apagadas pelo homem, mas não pelas memórias

Casa-Navio

No ano de 1940, foi construída uma das casas mais marcantes da Avenida Boa Viagem, a Casa-Navio, do empresário Adelmar da Costa Carvalho. O local foi ponto de encontro de turistas e recifenses ao longo de 41 anos. No livro “O Recife e seus bairros”, do historiador Carlos Bezerra Cavalcanti, consta que a casa possuía quartos, suíte, cinema, salão de jogos, sala de reuniões, restaurante e cabine de comando igual a de um navio.

A casa ficava entre as ruas Ribeiro de Brito e Ernesto de Paula Santos e acabou virando história em 1981, quando foi demolida para a construção do Edifício Vânia.

Castelinho de Boa Viagem

O charmoso Castelinho de Boa Viagem teve a construção iniciada em 1905 com o objetivo de modernizar o Porto do Recife. A casa foi comprada anos depois pela família Cardoso Ayres. O local também chegou a ser a casa de veraneio do usineiro Alberto Brito Bezerra de Mello.

No começo dos anos 1990, a casa deu lugar aos edifícios Castelinho e Castelo del Mar, localizados na esquina com a Rua Benedito Chaves. O espaço foi preservado, pois foi  incluído na lista dos imóveis especiais de preservação (IEP). 

Casa do Brigadeiro

A Casa do Brigadeiro é um palacete inaugurado no dia 11 de outubro de 1944, pelo brigadeiro Eduardo Gomes, patrono da Força Aérea Brasileira. No local, há uma placa informando que na época de sua construção, a via era pouco habitada e a área era de mangue.

A casa ainda está de pé e a placa fixada tem a seguinte frase: “Voltada para o Atlântico, mantendo eterna vigilância do nosso litoral, onde 34 navios brasileiros foram torpedeados, causando a morte de 1081 pessoas, na maioria, civis inocentes”.

O historiador Rômulo Xavier comenta que a preservação de casas históricas é uma maneira de manter a memória e história do bairro vivas. “Com a não preservação destas estruturas, a sociedade perde um pouco da história devido à verticalização das cidades. Gilberto Freyre era muito criticado por falar que o modernismo não é funcional, pois as construções coloniais eram mais adaptadas ao clima e relevo do que as construções modernas, que são as mesmas em todos os lugares, apesar de cada ambiente ser diferente”, conclui.