Cinema

Orson Welles 100 anos: o dia em que o Cidadão Kane esteve em Pernambuco

Recrutado como ator diplomático da nova política externa estadunidense, o cineasta viria ao Brasil para colher imagens do filme It's all true (É tudo verdade), em 1942

Publicado em: 05/05/2015 09:55 | Atualizado em: 05/04/2020 12:57

 (Foto: Arquivo/DP)
Foto: Arquivo/DP

Imagine o roteiro: em 1941, quatro jangadeiros saem de Fortaleza (CE) em uma embarcação precária e viajam 61 dias até o Rio de Janeiro. O trajeto de 2 mil quilômetros tem paradas estratégicas no Recife, em Salvador e Cabo Frio (RJ). A viagem guiada apenas pela experiência dos tripulantes e por insuficiente aparato náutico enfrentou ondas e tempestades em busca de um objetivo: pressionar o então presidente Getúlio Vargas a contemplar a categoria na legislação trabalhista. A empreitada digna de cinema atraiu o olhar do norte-americano Orson Welles, já notabilizado pelo sucesso de Cidadão Kane (1941), filme sobre a ascensão de um magnata da comunicação.

Recrutado como ator diplomático da nova política externa estadunidense, o cineasta viria ao Brasil para colher imagens do filme It’s all true (É tudo verdade), em 1942 - espécie de documento sobre a cultura latino-americana, com trechos brasileiros e mexicanos. A passagem pelo Recife de Orson Welles - cujo centenário de nascimento é celebrado amanhã - e a produção do longa concebido para mostrar o Brasil ao mundo são recordadas pelo Viver. O cineasta passou pela cidade no intervalo entre o Ceará, onde havia gravado as cenas do episódio Quatro homens em uma jangada, e o Rio, cenário do capítulo sobre carnaval e origem do samba.

Foram apenas dois dias entre Recife e Olinda. Na capital, ele teria acompanhado uma sessão do filme O coelho sai, primeiro longa sonoro produzido no Nordeste. E foi o debate sobre o cinema mudo ou falado que marcou a visita do diretor. O “Gênio de Hollywood” foi bem requisitado para falar sobre a sétima arte. Defendia um cinema mais artístico, elogiava as produções em preto e branco e previa o futuro em cores e som. “Cinema mudo exige arte. No cinema, a palavra é acidental. Deve predominar a fotografia. A palavra predomina no teatro”, afirmou ao Diario em 15 de julho. Orson confessou que tinha interesse em registrar elementos da cultura nordestina, como o maracatu e o cangaço e lamentou a passagem rápida pela cidade: “Gostaria de demorar mais, o que não é possível pela dificuldade dos transportes”.

Entre gravações, viveu a noite recifense. E encerrou a visita com uma farra pelas ruas do Centro, inspiração artística para os cineastas Lírio Ferreira e Amin Stepple. Os dois ficcionalizaram a “experiência etílica” em That’s a lero lero (1994), considerada a primeira produção da estética Árido Movie.

 (Foto: Chico Albuquerque/Divulgação)
Foto: Chico Albuquerque/Divulgação

Bebidas à parte, o projeto era traduzir o Brasil aos norte-americanos, como peça da nova política da boa vizinhança dos EUA. Saía de cena a estratégia do Big Stick (O porrete), caracterizada pela intervenção militar, e surgia o panamericanismo, dominação pelas esferas econômica e cultural. Foi a forma que Washington encontrou de, em meio à segunda guerra, tentar afastar da América do Sul a influência do nazismo. “Nesse esforço de guerra, o cinema era uma das várias ferramentas de aproximação dos Estados Unidos com o Brasil”, lembra o professor de Cinema da UFPE Paulo Cunha.

O próprio Orson alimentava o objetivo: “Na parte do carnaval, apresento muita música brasileira, que é ainda desconhecida nos EUA. Isso vai alcançar grande aceitação na América do Norte”, disse ao Diario à época. Mas o projeto nunca vingou por conta de atropelos na produção

Análise

O que deu errado
O roteiro compreendia a captação das imagens de cartões-postais. Mas o cineasta mudou o foco, diz professora da UFRN Flávia de Sá Pedreira. “Ele resolveu filmar nordestinos que faziam reivindicações trabalhistas e as manifestações culturais de moradores das favelas cariocas, berço do samba, que eram, na maioria, negros e mestiços pobres”, observa. “Queria mostrar uma terra de contrastes. A aventura marítima dos jangadeiros é a exaltação da força humana, vinda dos mais pobres”, explica o professor Firmino Holanda, autor de livro Orson Welles no Ceará. A conduta desagradou os estúdios e o governo brasileiro. O material do filme foi confiscado, o financiamento, cancelado e Welles, quase um anti-herói, não concluiu o trabalho. A morte do jangadeiro Jacaré tambem “atrapalhou” as filmagens. Em 1993, o material foi recuperado pelos diretores Bill Krohn, Richard Wilson e Myron Meisel. Eles reuniram em um novo filme os fragmentos de um clássico que não pôde ser concluído pelo próprio autor. O vídeo está no YouTube.

Welles por aqui

Centro do Recife
O cineasta demonstrou interesse em filmar as igrejas do bairro durante o dia para fazer um registro de um trecho da viagem dos jangadeiros. Nas imagens, eles entram em um templo em construção, atravessam uma vila de pescadores e, em seguida, retornam às jangadas.

Boemia
Na noite do Recife, o diretor teve um encontro com jornalistas, intelectuais e apaixonados pelo cinema para discutir o futuro da sétima arte. Segundo os relatos, logo depois do debate, que foi bem acalorado, Welles foi curtir os bares da cidade - aventura sobre a qual carecem relatos precisos.

Olinda
Na cidade, ele se dedicou a registrar a praia, como havia anunciado no desembarque no estado. “Filmarei o mar de Olinda”, disse. As imagens compuseram uma das passagens marítimas dos jangadeiros antes da ida a Salvador (BA).

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