Assim que uma lantejoula é fixada ao tecido, Dona Marinalva alinhava a miçanga seguinte. Repete a sequência durante horas. São 13 mil lantejoulas e 13 mil miçangas costuradas à mão em cada gola das caboclas do Maracatu Coração Nazareno. É preciso vestir mais de 60 brincantes - entre caboclas, rainha, dama, princesa - e falta menos de um mês para o carnaval. Tão atenta à máquina de costura e às agulhas quanto ao calendário, Dona Marinalva é uma das costureiras que, nos bastidores de agremiações carnavalescas ativas em Pernambuco, vivencia a corrida contra o tempo nas semanas anteriores ao carnaval. O Viver sondou a rotina por trás dos figurinos de quatro grupos tradicionais no estado: além do Maracatu Coração Nazareno, o Afoxé Oxum Pandá, a escola de samba Gigantes do Samba e o centenário Clube Carnavalesco Misto Pão Duro, homenageado do carnaval do Recife deste ano.
Afoxé Oxum Pandá
“Os tecidos para Oxum são os mais caros, os mais bonitos, porque Oxum é o ouro, é a mais bonita também.” O tom da frase, dita pelo babalorixá Genivaldo Barbosa, vai da preocupação à euforia. Os custos para homenagear a entidade mais sensual do candomblé não são baixos, mas o afoxé vai às ruas todos os anos, desde 1995. A matéria-prima do figurino é comprada em novembro, quando são desenhados os modelos do ano seguinte. A indumentária é composta pelo axó (saia), pelo torço (turbante), pelas amarrações, pelos abadás (blusas) e pelo xocotô (calça) - no caso do Oxum Pandá, sempre em amarelo e branco.
Ceça, costureira-chefe, recruta seis funcionárias, todos os anos, para dar conta dos 200 figurinos. Cada um deles, confeccionado com tecidos nobres e bordados de passamanaria, custa, em média, R$ 150. “Não reciclamos peças. Fazemos roupas completamente novas a cada ano. E como as pessoas não pagam para desfilar, dependemos dos incentivos do governo. Nos endividamos para custear o figurino, caímos na mão de agiotas, estouramos cartões”, admite Genivaldo. “Poderíamos até sair com mil pessoas, mas não podemos pagar tantas fantasias.” Neste ano, com o início tardio da produção por falta de verba, as peças devem ficar prontas somente na semana anterior ao carnaval.
Maracatu Coração Nazareno
Criado há 12 anos por mulheres da Associação das Mulheres de Nazaré da Mata (Amunam), o Maracatu Coração Nazareno acumula, hoje, cinco estandartes - um novo é produzido a cada dois anos. A troca anuncia, também, a renovação de todo o figurino do grupo, formado exclusivamente por mulheres. Neste ano, peças do último carnaval serão “recauchutadas”, como sempre ocorre nos intervalos entre um estandarte e outro. Dama, valete, príncipe e princesa serão os únicos personagens a desfilar com indumentária nova. A medida reduz custos e esforços, já que cada gola de cabocla requer 13 mil lantejoulas aplicadas à mão, com custo médio de R$ 1,2 mil.
Um metro de tecido, geralmente comprado em Carpina ou no Centro do Recife, custa cerca de R$ 50, segundo Marinalva Isabel, costureira responsável pela produção. “E somente o vestido da rainha consome dez metros. O do rei, sete”, contabiliza. As cores são padronizadas em rosa e lilás, com detalhes em amarelo. “A parte mais demorada é a aplicação de miçangas, lantejoulas, botões, franjas. As mulheres da associação nos ajudam a costurar. Ou não tem fim”, brinca Marinalva. Após o carnaval, os moldes do ano seguinte já são riscados e cortados. Para reformar a vestimenta do cortejo, o tempo de produção varia entre quatro e seis meses. “Não há tema, nem enredo, como nas escolas de samba. Os personagens do maracatu são fixos e a indumentária também, o que facilita o processo de produção, praticamente todo manual”, explica Salatiel Cícero, produtor artístico do grupo.
Clube Carnavalesco Misto Pão Duro
Na casa de Seu José Levino, presidente do Clube Carnavalesco Misto Pão Duro, que neste ano desfila pela centésima vez e é homenageado pelo Carnaval do Recife, duas costureiras viram a noite entre tecidos, lantejoulas e pedrarias. A esposa dele, Dona Maria José da Silva, senta-se à mesa e costura com elas, orienta, supervisiona. Os custos do transporte entre a casa da família e a sede do clube descartaram a jornada diária entre os dois pontos. “Concentrei tudo na minha casa. Inclusive a produção do figurino”, conta Levino, de 80 anos, há 50 engajado no grupo.
Os materiais começam a ser comprados na metade do ano, no ritmo que a condição financeira permite. “Vamos comprando e produzindo aos poucos, de acordo com a quantia que temos. Ainda falta bastante coisa para fevereiro, mas o dinheiro acabou. Estamos aguardando a cota da prefeitura.” O tema do próximo desfile é No compasso do frevo, com indumentária característica do clube: vestidos largos, longos, com babados, calças compridas e chapéus com brilho, a depender da ala. A cada setembro, as costuras para o carnaval seguinte já consomem as madrugadas nos bastidores do clube. “Tem tecido, lantejoula, fita prateada, renda, pedraria, cortes em lamê. Compramos tudo no Centro [do Recife]”, diz Levino. Para ele, o figurino deve transparecer fartura e exuberância, mesmo em tempos de escassez.
Escola de samba Gigante do Samba
Moradores da comunidade de Água Fria, Zona Norte do Recife, trabalham para concluir o figurino da Gigante do Samba há oito meses. Octacampeões do desfile de escolas de samba do carnaval pernambucano, homenageiam Miguel Arraes no próximo desfile. Numa cooperativa próxima ao Morro da Conceição, também na Zona Norte, oito costureiras produzem as fantasias dos mais de 730 brincantes (são 12 alas com aproximadamente 60 pessoas cada). “Depois, no barracão, costuramos as lantejoulas, os paetês, as plumas…”, diz André Paiva, carnavalesco da agremiação. Uma vez escolhido o enredo do carnaval seguinte, ele produz com as costureiras as peças-piloto. Primeiro, vêm os croquís, depois os moldes. A paleta de tons é escolhida em torno do verde e amarelo, as cores do grupo.
As roupas mais simples custam entre R$ 150 e R$ 200. Na ala das baianas, cada fantasia custa R$ 800, e na bateria, cada uma sai por R$ 450. Vestir os 13 componentes da comissão de frente custa R$ 19,5 mil, enquanto Mestre Sala e Porta Bandeira custam, juntos, R$ 15 mil. “As pessoas da comunidade não pagam para desfilar. Em contrapartida, trabalham o ano inteiro no barracão”, conta André. Valiosas, as roupas são confinadas até a Folia de Momo. “A essa altura, estamos 85% prontos para ir às ruas”, estima o carnavalesco. Após o desfile, as fantasias são doadas a blocos, maracatus e escolas de samba menores, onde são reaproveitadas para o ano seguinte.
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