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Carnaval 2016: Quando a folia confunde brincadeira e liberdade com preconceito e intolerância
O clima de algazarra foliã está expresso nos estandartes, nas fantasias, nas brincadeiras carnavalescas. Não raro, no entanto, a jocosidade extrapola limites e abre espaço para o machismo, a homofobia e a segregação
A liberdade para brincar com estereótipos de todo o tipo é marca indissociável do carnaval pernambucano. Entre confetes e serpentinas (ou entre jatos de água e espuma, para soar mais contemporâneo), a ordem é, digamos, subverter a ordem. O clima de algazarra foliã está expresso nos estandartes, nas fantasias, nas brincadeiras carnavalescas. Não raro, no entanto, a jocosidade extrapola limites e descamba para o desrespeito, a intolerância e o preconceito.
Os principais alvos das atitudes de mau gosto, maliciosas (ou até mesmo inocentes, mas ainda assim reprováveis pela carga negativa) são aquelas pessoas já calejadas, pois sofrem desses mesmos estigmas em outras épocas do ano.
A própria natureza do carnaval, por seu caráter “profano”, é um catalisador da objetificação do corpo feminino, do machismo e de comportamentos agressivos exemplificados na recorrência do “beijo roubado” em Olinda e Recife (proibido pela Justiça há alguns anos). Para coibir a prática, o ato antes interpretado como atentado ao pudor passou a ser tipificado como estupro desde 2009.
Se aos olhos do turista o carnaval pernambucano encanta justamente por ser inclusivo, sem a rigorosidade dos cordões de isolamento e abadás baianos (por ora, vamos ignoras os gigantescos camarotes reservados aos mais abonados), engana-se quem acredita na convivência pacífica e respeitosa com homossexuais, pessoas com deficiência, obesas, pobres, negras. Sim, na teoria, a folia cria uma espaço para brincar todo mundo junto e misturado, mas não sem o ônus dos atritos, segregações e da violência simbólica. Na tentativa de tornar o carnaval de rua um ambiente mais acolhedor, organizações e grupos de pessoas comuns tem se unido para criar blocos com ideias contrárias ao preconceito.
Para a socióloga Sílvia Camurça, militante do Instituto Feminista para a Democracia e do Fórum de Mulheres de Pernambuco, os nomes de blocos e as letras das músicas, por exemplo, expressam o que está na cultura, na crença da população em geral e, por isso, possibilita fazer uma leitura do cotidiano. “Todo o machismo e preconceito vai estar expresso durante o carnaval, assim como o que houver de repúdio a esses comportamentos também vai aparecer. Afinal, todo ano surgem novas troças que fazem criticas sociais e políticas”.
A posição é a mesma da presidente da Troça Carnavalesca Mista Toda Forma de Amor, Camila Moura. Embora a agremiação tenha sido criada para falar do sentimento de maneira mais ampla, teve grande adesão do público LGBT. “A gente faz um movimento em prol do amor, sem se prender a uma questão homoafetiva. Desenvolvemos ações sociais o ano inteiro, de doações de roupas a moradores de ruas, campanhas de doação de sangue, entre outras atividades. Ter sido abraçado pelo público homossexual foi muito bom. O importante é espalhar o amor”.
Questionada sobre o preconceito perpetuado por frevos e marchinhas de carnaval, Camila diz não se apegar se as músicas eram ou não ofensivas. “Elas já estão aí há décadas e não dão sinais de desaparecimento, até porque frevos e marchinhas novas não costumam pegar. Quando essas composições apareceram, era vigente uma outra cultura. Talvez não existisse a ideiam de serem preconceituosas, embora fossem”.
A preocupação com o repertório é diferente quando as festas carnavalescas se afastam dos polos tradicionais de folia de Recife e Olinda. Segundo a educadora e cientista social Simone Ferreira, na Zona da Mata é comum a contratação de bandas cujas músicas incentivam a violência doméstica(ela menciona trechos como “novinha, vou te pegar” e “você não tem escolha”).
“Ao mesmo tempo, é uma região com numero muito alto de violência contra mulheres e de estupro, em especial os municípios de Catende e Joaquim Nabuco. Por isso é essencial fazer um trabalho político-pedagógico na saída dos blocos, criticando essas músicas. Entregamos panfletos e ímas com orientações”, alerta Ferreira, atuante no grupo de Articulação de Mulheres da Mata Sul e no Fórum de Mulheres de Pernambuco.
Sobre a maneira como heterossexuais se divertem, durante o carnaval, ao criar caricaturas estereotipadas do público LGBT, a coordenadora do Bloco da Diversidade de Pernambuco, Micheline Américo, não enxerga como preconceito. “Não recriminados homens que se vestem de mulher ou encarnam travestis de modo muito afetado. Isso é, inclusive, um desejo enrustido dos homens de adentrarem no universo das mulheres, das lésbicas, dos gays e das trans. Imersão até salutar, embora muito estereotipada.”%u2028%u2028
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Mesmo sem se dar conta, muitos foliões reproduzem preconceitos enraizados na cultura brasileira até mesmo antes do carnaval, na hora de escolher a fantasia. A tradicional Nêga Maluca é exemplo emblemático, duramente criticado por várias entidades ligadas à mulher negra, e considerada uma versão brasileira do black face (prática teatral de atores norte-americanos, nos séculos 19 e 20, que se coloriam com carvão para representar personagens negros de forma exagerada). Geralmente estereotipada com seios e nádegas grandes, lábios grossos e cabelo volumoso, a Nêga Maluca é uma vestimenta ofensiva por tirar sarro da identidade e da raça das pessoas, defendem .
TRÊS PERGUNTAS – Sílvia Camurça, socióloga e militante social
Que comportamentos preconceituosos ou sexistas são mais combatidos durante o carnaval?
O mais comum é a exploração da sexualidade feminina. Durante todo o ano, qualquer uma que ande sem sutiã vai presa, mas no carnaval isso é valorizado, estimulado. Você pode desfilar na escola de samba quase sem roupa. É uma situação ambígua. Em um momento é atentado ao pudor e, em outro, não. Isso está associado ao mercado do carnaval, da indústria de bebidas alcóolicas, do entretenimento. Ou seja, quando o corpo da mulher está a serviço do lazer, está tudo liberado. Até a “globeleza”, praticamente nua, é um símbolo de como a exploração do nu está ligado à indústria do entretenimento.
Qual a melhor forma de lutar contra isso?
De certo modo, a sociedade está caminhando para trás no que diz respeito aos seus preconceitos. Acredito que hoje existe mais gente conservadora do que nos anos 1970. Felizmente, há um equilíbrio por causa da existência de expressões que contestam os preconceitos por meio da ironia, de denúncias engraçadas de situações cotidianas. Surgem grupos feministas interessados em falar sobre liberdade sexual e denunciar o machismo. Nesse sentido, o carnaval é uma festa bem democrática.
Como você encara a longevidade de marchinhas preconceituosas, como Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão?
Marchinhas que expressam preconceito sem serem violentas podem e precisam ser tocadas, porque na sociedade continua a existir gente interessada em criticar ou fazer gozação com gays. Isso faz parte da dinâmica social. Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão são completamente atuais, expressam o preconceito que está no povo, e é com críticas a elas que a gente vence. Algumas pessoas não veem sentido nelas e preferem brincar com outros assuntos, mas não significa que essas músicas precisam ser censuradas. A única ressalva é quando se trata de bandas e cantores contratados pela administração pública. Nesse caso, não se pode permitir agressões a lésbicas, gays, negros etc. Se estimula o ódio, tem que ser banido, pois se aquele show está sendo pago com dinheiro dos impostos, tem que atender a todos os públicos.
na contramão
A cada ano, aumenta a quantidade de troças e blocos com interesses além dos dias de carnaval, como a defesa da diversidade, da inclusão de pessoas com deficiência, o combate ao racismo e a outros tipos de preconceito.
Bloco da Diversidade e Troça Toda Forma de Amor
O respeito às diferenças é a principal bandeira do Bloco da Diversidade, que há sete anos desfila na semana pré-carnavalesca. É considerada a primeira agremiação voltada ao público LGBT. Já a Troça Carnavalesca Mista Toda Forma de Amor desfila pela segunda vez este ano para celebrar o amor em todas as suas expressões. O nome é inspirado na música de Lulu Santos.
Sou Gorda mas eu Pulo
Foi na comunidade do Passarinho, Zona Norte do Recife, onde três amigas, gordas e negras, fundaram o bloco Sou Gorda mas eu Pulo, em 2008. Segundo a presidente Edcléa Santos, tudo começou com uma questão de representatividade. “A gente vai nas lojas e não encontra roupa do nosso tamanho, nunca vê uma gordinha na escola de samba, dançando frevo. Onde elas estão? Atrás do isopor, vendendo cerveja, ou andando pelas ruas para catar latinhas. Não temos visibilidade na mídia nem em canto algum”.
O grupo tem um trabalho integrado de enfrentamento ao racismo e de valorização da beleza da mulher, do cabelo, do corpo. Na hora de cair no passo, também há momentos de pegar o microfone e passar mensagens de conscientização. “Ser mulher, negra e gorda é ser discriminada triplamente. É ser alvo de músicas, piadas que só têm o objetivo de inferiorizar e de baixar a autoestima da gente. Então é preciso reagir. A mulher precisa se sentir bonita, vestir a roupa que quiser, nunca se sentir ridicularizada”, defende Edcléa Santos, também educadora do Grupo Espaço Mulher.
Grêmio Anárquico Feminazi Essa Fada
O feminismo e as relações de gênero estão por trás do colorido do bloco. Criado no ano passado, as foliãs (e, claro, os foliões simpatizantes à causa) chama a atenção para o machismo exacerbado nos dias de carnaval. O grupo desfila na segunda-feira de carnaval, nas ladeiras de Olinda.