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Na abertura do Janeiro, Nachtergaele comove com peça para a mãe que se matou
No solo Processo de conscerto do desejo, ator expõe a própria história de vida com simplicidade ao trazer textos e músicas ligados à poetisa Maria Helena Nachtergaele, morta quando ele tinha três meses
Por: Isabelle Barros
Publicado em: 09/01/2016 18:18 Atualizado em: 09/01/2016 18:53
Ator transforma tragédia pessoal em peça íntegra e mostra amadurecimento inquestionável como artista. Foto: Marcos Hermes/Divulgação |
A abertura do Janeiro de Grandes Espetáculos deste ano teve como mote a resistência. Resistir apesar das dificuldades para fazer arte e resistir apesar da dor. A expectativa era grande por conta da vinda de Matheus Nachtergaele ao Recife em sua primeira peça teatral após dez anos, Processo de conscerto do desejo.
Confira a programação completa do Janeiro de Grandes Espetáculos
A encenação é uma celebração à vida da sua mãe, a poetisa Maria Cecília Nachtergaele, falecida quando ele tinha três meses. A plateia, lotada, estava coalhada de artistas, muitos deles amigos do ator, que tem Recife como um ninho afetivo. Esta foi a primeira vez em que a peça foi apresentada em um palco italiano, em um início de várias adaptações que o trabalho deve passar em sua carreira fora do Rio de Janeiro, onde teve temporada no fim do ano passado.
Leia entrevista com Matheus Nachtergaele sobre o espetáculo
Como de praxe, os organizadores do evento, Carla Valença, Paula de Renor e Paulo de Castro tomaram a palavras para dar boas-vindas ao público, e, a partir das palavras de Paula, a voltagem emocional da noite já começou alta. Em dado momento, ela pediu a palavra para ler uma carta aberta e dedicada a quem continua a fazer arte, apesar dos revezes causados pela falta de políticas públicas eficientes para a cultura.
Confira o roteiro de peças em cartaz no Divirta-se
Após o desabafo de Paula, muito aplaudido pela plateia, entra em cena Matheus Nachtergaele, acompanhado musicalmente, ao longo do espetáculo, pelo violonista Luã Belik e pelo violinista Henrique Rohrmann. Com um vestido preto, referência direta à vestimenta que a mãe usaria em seu batizado se não tivesse se suicidado, o ator fez sempre um caminho de mão dupla – falava por si e pela mãe, por meio de seus poemas e das músicas que ela gostava.
A escolha de Mateus para seu solo é de uma grande simplicidade cênica, que acentuou o efeito das lembranças deixadas por Maria Cecilia e deixa claro o espírito da peça – falar de sentimentos, de coisas intangíveis e fortes como a morte e a vida que, ironicamente, pode brotar dela. Estão no palco apenas uma cadeira para si e outra para o violinista, que traz o fundo musical para a fala límpida de Matheus.
A iluminação é a grande companheira cênica do ator ao longo da encenação. É com ela que o artista joga, em uma alternância de luzes e sombras tornadas metáfora da história de Matheus e Maria Cecília: no palco, ele ilumina as próprias dores pela perda da mãe para elas se tornarem arte e transcenderem o trágico. Ao trazer uma superfície espelhada para o centro do palco e se deixar refletir por ela, Mateus deixa a nu a metáfora da presença da mãe – ela está no palco duplamente, tanto pelos seus textos e músicas preferidas quanto pela presença do filho.
Outra impressão deixada pelo espetáculo é a falta que o ator faz para os palcos brasileiros. Em sua primeira peça em dez anos, Matheus mostra o quanto é um artista sensível, de muitos recursos, que consegue trazer as nuances da sensibilidade da mãe perante o mundo e, ao mesmo tempo, falar de si sem se deixar seduzir pelo narcisismo. Em um mundo no qual falar de si se tornou quase uma compulsão – as redes sociais estão aí para provar isso - este é um equilíbrio difícil de manter. No Teatro de Santa Isabel, foram vários os momentos nos quais ele foi aplaudido em cena aberta, ao ter o público em suas mãos e dominar as transições entre momentos ternos, sóbrios e contemplativos.
Por meio de Maria Cecília, o ator fala de si e da maturidade conquistada em momentos de grande delicadeza. Matheus senta no chão, cada vez mais próximo à perna do violonista Luã Belik, até enlaçá-la. Nenhum discurso poderia trazer de maneira mais forte a fragilidade e a feminilidade da mãe. A fragilidade e a feminilidade trazidos por este gesto transcendem qualquer discurso. Isto também acontece quando Matheus canta várias das músicas da mãe, em momentos verdadeiramente comoventes, como Io te amo solo a te, de Sergio Endrigo. Embora, em vários momentos, os escritos deixados por Maria Cecília tenham um tom nitidamente agridoce, seu filho pede uma licença final à tristeza da perda para uma celebração. Matheus se despede com música e compartilha o palco com a plateia e com amigos, que dançam uma última canção.
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