Alceu Valença nasceu oito anos após a morte de Virgulino Lampião, mas as lendas dele e de outros cangaceiros eram transmitidas durante a infância, quando morava em São Bento do Una, no Agreste pernambucano, onde também bebeu de referências culturais adotadas no cancioneiro. Amanhã, após exibições em festivais, chega aos cinemas brasileiros uma das mais poéticas versões do cangaço, já revisitado em pesquisas históricas, cordéis, livros, espetáculos teatrais, filmes.
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Nas duas primeiras semanas, apenas o Cinépolis Guararapes (Shopping Guararapes) terá sessões do longa-metragem, pois o lançamento é uma exclusividade da rede de cinemas. Para compensar o atraso, o cantor, compositor e agora cineasta pernambucano promete fazer aparições nas salas de exibição.
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A luneta do tempo, roteirizado e dirigido por Alceu, insere Lampião e Maria Bonita em um enredo inextrincável. Apesar dos nomes, os personagens se distanciam das pesquisas históricas sobre eles e do discurso defendido pelo bando. O filme emaranha as conquistas e a derrocada dos cangaceiros com a jornada do circo, histórias de amor, vingança, morte e a tradição cultural do interior nordestino, potencializada pelas falas, sutilmente rimadas, sob inspiração do repente e da literatura de cordel, e gravadas previamente para conduzir o ritmo da interpretação.
"Coloquei o nome de Lampião no personagem porque ele é um mito, mas podia ser até Aroldão. O discurso político, sobre ditadores, Getúlio Vargas não tem nada a ver com ele. Ele é um poeta absolutamente erudito. Talvez seja a minha alma dentro da alma de um cangaceiro. Mas não sou tão erudito assim", divaga Alceu, antes de uma sonora gargalhada.
Além das histórias concorrentes, a trama ocorre em dois tempos distintos. No primeiro, o circo do conquistador Nagib Mazola (Ceceu Valença) chega à cidade e o bando de Lampião está ativo, até ser atacado e dizimado pelos policiais, capitaneados por Antero Tenente (Servilho de Holanda). No segundo, 25 anos depois, Lampião não aceita que está morto e acompanha, através da luneta do tempo, o trágico desfecho entre dois filhos de Nagib Mazola - um (Charles Theony) com a esposa de Antero, criado como filho dele, e outro (Ari de Arimateia) com a viúva de Severo Brilhante (Evair Bahia), braço direito de Lampião.
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Tornado real ao longo de mais de 15 anos, a partir de um texto escrito em homenagem ao pai, Décio Valença, em 1999, em uma mesa do bar Amarelinho, no Rio de Janeiro, cujo potencial cinematográfico foi desvendado pelo cineasta Walter Carvalho, A luneta do tempo é um mergulho nas lembranças da infância agrestina. "No fim das contas, eu tenho uma agenda tão cheia que queria um retorno a São Bento, a minha terra. E, ao mesmo tempo, a saudade que eu tinha do meu pai, das histórias, da feira, dos emboladores, cordelistas, da sanfona, do cego da feira, do padre", reflete o cantor, que não cogita outro projeto cinematográfico e, confessa, sonhava em fugir com o circo, quando menino.
Três perguntas para Alceu Valença
Quando você começou a ter acesso à história do cangaço?
Desde criança, conheci tudo isso. Tinha a literatura de cordel, mesmo porque o meu avô fazia cordéis, não como profissional. A feira de São Bento me comovia, eu via os emboladores, os cordelistas, os sanfoneiros, o berimbau de bacia, tudo da cultura popular. O meu pai contava histórias sobre o cangaço, de quando se dizia que a fazenda do Tio Alceu iria ser invadida. A minha mãe, quando eu era pequeno, disse que, um dia, teve que dormir no mato porque havia a possibilidade de ataque dos cangaceiros.
Como era a relação com o circo?
Quando eu morava em São Bento, os circos pasavam por lá. Eram circos pequenos, mambembes. Por que meu filho (Ceceu) faz o papel de um argelino? Quase sempre, o cara era francês, espanhol, italiano. Dava um upgrade. É a mesma coisa que, hoje, o camarada cantar em inglês. Mas o meu filme é linguagem brasileira, pernambucana, saobentense. É o meu filme, não tem nada a ver com caubói. Fiz porque quis fazer. Sou autoditada e faço. Sou de uma terra que tem cinema de autor. Lírio (Ferreira) não parece com ninguém. Cláudio Assis, idem. Quando vi Cinema, aspirinas e urubus, de Marcelo Gomes, conheci Hermila (Guedes). Foi ali que pensei nela. Irandhir, tinha visto em Baixio das bestas (de Cláudio Assis). O som ao redor (Kleber Mendonça Filho) é maravilhoso. É uma honra ser considerado cinema pernambucano. Cada um tem o seu estilo, é dono do seu nariz. Essa coisa é inacreditável, quando hoje vivemos no domínio do entretenimento, em que o artista tem que fazer o que o produtor quer. E o meu nariz é grandezinho.
O discurso de Lampião faz duras críticas ao governo e à polícia. Qual a sua opinião sobre o nosso momento político atual?
Eu só gostaria de fazer um pronunciamento quando acabar a eleição com financiamento privado. Uma vez, estava falando com uma pessoa e ela disse tem gente que tem simpatia pelo projeto político. Simpatia de R$ 10 milhões? Queremos democracia verdadeira, quando o poder econômico não suborna nem dá dinheiro, sem marqueteiros e o povo sendo enganado.
Disco
Livro
de Alceu e autor do livro A luneta do tempo: Os bastidores do filme de Alceu Valença (Chiado Editora, R$ 75), com fotografias de Antônio Melcop.
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