Além da história
Livros se reinventam na forma e no conteúdo para cativar leitor antes mesmo do primeiro contato
Entre os mais ousados, estão "S.", de J.J. Abrams, e "O sumiço", de George Perec, ambos recém-lançados no Brasil
Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco
Publicado em: 07/03/2016 18:31 Atualizado em:
Livro de J.J.Abrams é considerado um quebra-cabeça literário. Foto: Editora Intrínseca/divulgação |
Surpreender o público cada vez mais cedo é desafio assumido com frequência por quem trabalha com produção de conteúdo voltado para o entretenimento. Não raro, esse é um objetivo a ser alcançado antes mesmo de os consumidores entrarem em contato com as obras. Por isso a importância do teaser de uma série, do trailer de um filme, da premissa de uma novela. No universo literário, o segredo para fisgar o leitor em potencial pode estar na ousadia da forma, no inusitado proposto pelo conteúdo ou, quem sabe, no casamento entre as duas apostas.
A vasta e bem-sucedida experiência do norte-americano J.J. Abrams no cinema e na televisão sem dúvidas o fez acumular alguma experiência na sedução do público. Criador de séries como Lost e diretor de longas como Star Wars – O despertar da força, ele estreia na literatura com S. (Intrínseca, R$ 99), um quebra-cabeça literário de múltiplas narrativas e várias possibilidades de leitura, escrito em parceria com Doug Dorst. Vendido em uma caixa, o livro tem as margens todas escritas à mão por personagens, além de vir acompanhado de bilhetes, fotos, cartões-postais, documentos. A obra se faz passar por um velho e maltratado exemplar de O navio de Teseu, supostamente escrito em 1949.
A inspiração para a caixa de enigmas surgiu quando Abrams encontrou, há 17 anos, um romance abandonado no aeroporto. Nele, havia escrito algo como “A quem encontrar este livro, por favor, leia, leve para algum lugar e deixe-o para alguém encontrá-lo”. O episódio o fez lembrar quando estava na universidade e costumava ler as anotações deixadas por outros leitores nas margens. “E aí comecei a pensar – e se existisse um livro bem legal que fosse cheio de anotações, completamente coberto de recados trocados entre duas pessoas? E se uma conversa, ou um relacionamento, começasse dentro do livro? Esse foi o começo do processo”, comentou J. J. Abrams, em entrevista à revista The New Yorker. Sobre a concretização do projeto, ele ainda frisou a intenção de fazer uma celebração ao analógico, ao livro como objeto físico, tangível, sobretudo pelo fato de, hoje em dia, as informações circularem quase sempre pela “nuvem”.
Georges Perec. Foto: Editora Autêntica/divulgação |
Pela complexidade da criação do cineasta norte-americano, a edição brasileira demorou três anos para ser preparada por uma equipe de 15 pessoas. Contudo, em termos de dificuldade de tradução, S. não chega nem perto do recém-lançado O sumiço (Autêntica, R$ 53), escrito pelo parisiense Georges Perec (1936-1982) em 1969 e até então considerado intraduzível. Isso porque o romance policial sobre o sumiço da letra “e” – a mais frequente do idioma francês – contamina o próprio texto, todo escrito sem a vogal. Para verter a narrativa para o português, José Roberto Andrade Féres (ou Zéfere), doutor em literatura e cultura pela UFBA, mergulhou fundo em pesquisas sobre o autor e levou oito anos para entregar a versão nacional. A tarefa só foi cumprida a partir de transformações e adaptações, erros voluntários, e até o uso de palavras em outras línguas.
A excentricidade da obra de Perec, produzida em formato de lipograma (quando uma letra não é usada intencionalmente), não é caso isolado. O autor francês foi um adepto da corrente literária Ouvroir de Littérature Potentielle (oficina de literatura potencial, em tradução livre), surgida na década de 1960 e cujo cerne era propor uma série de “constrangimentos literários”. Também foram adeptos autores como Italo Calvino, Raymond Queneau e François Le Lionnais. Embora tenha ares de vanguarda, O sumiço não é a primeira obra lipogramática publicada no Brasil. Entre as produções nacionais, há O livro sem a letra A, de Ricardo Mardegam, O sonho de ser escritor, de Elder Prates, e Desilusões de um só soluço, de Odone Vontobel.
Entrevista Zéfere, pesquisador e tradutor da obra de Georges Perec
Os “constrangimentos literários” contribuem com a inspiração?
Claro, são estímulo para a criatividade. Fiquei super alegre quando comecei a ler sobre isso, aos 20 anos de idade. Senti alívio por existir pessoas que pensavam assim, por saber que eu não precisaria esperar a inspiração chegar. Poderia usar regras para escrever, não necessariamente as mais complexas. Falo de regras simples, bobas, como se desafiar a escrever todo dia algum texto a partir de uma palavra que leu na rua, nas placas. Essas ferramentas colocam a linguagem em movimento e potencializam a escrita, a língua.
Autores brasileiros de obras lipográficas são bem pouco conhecidos. Isso é realidade também fora do país?
É, sim. O próprio Perec fez estudo sobre a história do lipograma, em que questiona os motivos pelos quais essa escrita experimentada é escanteada, como se fosse mero joguinho, como se não tivesse seriedade. Para ele, a literatura é um jogo, e ele não consegue ver o porquê de haver preconceito em relação aos jogos, que têm seriedade imensa.
Além de complexo, O sumiço era considerado por muita gente um livro intraduzível. Como foi o processo e por que encarar esse desafio?
Comecei a trabalhar nele há oito anos, quando estava na França, fazendo mestrados em literatura comparada e tradução literária. De lá para cá, não me dediquei exclusivamente ao projeto. Fiz outras traduções, dei aulas, escrevi poesias. Isso, inclusive, foi legal porque quando comecei a traduzir O sumiço, não tinha nenhuma experiência profissional na área. Contudo, os outros trabalhos e estudos ajudaram a amadurecer o processo.
No posfácio, você fala da necessidade de tomar liberdades na adaptação, a ponto de inventar saídas criativas para lidar com a obra de Perec.
Por se tratar de lipograma, foi preciso um distanciamento do que está escrito palavra por palavra, para recriar ou transcriar, como dizia Haroldo de Campos. Adaptei jogos de palavras que apontam para a própria língua. Uma mudança foi reescrever poema de Olavo Bilac e inserir no livro, no lugar de um de Baudeleire. Escolhi o texto porque fala do tema da obra, isso de você burilar toda a escrita e fazer com que o leitor não perceba o esforço. Quis passar a ideia de transmitir prazer com esses jogos, sem que, necessariamente, o leitor perceba todo o suor, toda a transpiração por trás da inspiração.
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