Enquanto Coco Chanel libertava as mulheres dos espartilhos e tomava por referência o traje de marinheiros para oferecer a elas roupas esportivas - com golas altas, cores sóbrias, listradas, feitas em malha ou tricô - no início do século 20, a androginia era semeada na moda. Yves Saint Laurent daria seguimento à tendência criando, mais tarde, o “le smoking” (versão feminina do convencional) e chocando o mundo conservador dos anos 1960, quando mulheres eram rechaçadas ao usar calças compridas.
A ousadia quebrou paradigmas. Mas os frutos maduros da alta costura andrógina viriam somente no futuro: em 2015, a tradicional figura da noiva que encerra apresentações da Chanel subiu à passarela encarnada por Kendall Jenner, com terno e penteado masculinos. Denotava um rompimento. Não fosse o véu, olhos destreinados a confundiriam com um noivo, enquanto os limites entre feminino e masculino eram definitivamente sobrepujados.
Dez mandamentos de Costanza Pascolato, a papisa da moda, sobre estilo e comportamento
“É uma conquista. Para os que tinham dificuldade em transpor padrões impostos pelos conceitos de homem e mulher, a moda é um instrumento facilitador. Traduz a busca pelo ‘eu’, sem limitação de gênero”, explica a pesquisadora Simone Barros, doutora em design de moda e professora do departamento de design Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para ela, a moda andrógina fincou suas raízes - semeadas por Chanel e Saint-Laurent no passado - nas décadas de 1970 e 1980, quando o conceito unissex tomou forma no Brasil. Naquela época, especialistas como Costanza Pascolato, a papisa da moda no país, já falavam em androginia - “com isso, expressamos nossas ideias mutantes sobre o que é ser homem ou mulher”, escreveu Costanza em artigo publicado em 1988.
Traduzindo o alcance crescente do estilo nas semanas de moda internacionais, as últimas décadas foram de amadurecimento e consolidação para a tendência, escorada por astros como David Bowie, Michael Jackson, Prince, Boy George, Lady Gaga e Janelle Monáe. Isso se refletiria, inclusive, na alteração no padrão dos castings das principais grifes internacionais: expoentes como a modelo transgênero Hari Nef, a atriz Ruby Rose e os brasileiros Natasha Hollinger e Goan Fragoso desfilam combinação de traços femininos e masculinos, hoje assídua nas passarelas. Nike e Zara, marcas mais populares, lançaram coleções agêneras neste ano, em tons frugais e modelagem básica, alastrando a androginia entre consumidores alheios à haute couture europeia.
“Embora exista resistência, especialmente por parte de grupos mais tradicionais, geralmente mais velhos ou cujas religiões não admitem a fusão dos papéis [masculino e feminino], os mais jovens já representam fatia poderosa do mercado consumidor. E eles estão abertos à androginia, eles a legitimam. É um reflexo da cultura pop, dos debates pela igualdade de direitos e do empoderamento da mulher em suas funções sociais”, comenta Simone Barros. Segundo ela, não se trata de modismo passageiro. “No futuro, haverá espaço para tudo. A androginia permite maior versatilidade das peças. Não são mais roupas de homens usadas por mulheres. São peças universais.”
ENTREVISTA: Frederico F., estilista pernambucano
A que você atribui o fortalecimento da androginia no universo da moda? Por que a tendência se tornou tão forte e segue em alta nas últimas temporadas?
Na verdade, acho que essa coisa de classificar o ser como masculino ou feminino já vem sendo discutida e colocada à prova há algum tempo. Mas, com o fortalecimento de redes sociais como nova ferramenta de comunicação em massa, as coisas são ditas com maior velocidade. A nova geração não sente a necessidade de classificar tudo com um nome ou com base em orientação sexual. É um novo mercado e um novo consumidor, em busca de peças independente do gênero e da sexualidade. Eles buscam coisas autênticas, desprendidas de papéis sociais pré-impostos. A moda reflete que estamos caminhando para uma nova maneira de ver o mundo, e isso é maravilhoso.
Tecnicamente, que elementos são modificados nas peças para eliminar ou atenuar as restrições de gênero?
As cavas precisam ser maiores, os tamanho também são "oversized" (ampliados), fazendo a peça vestir bem tanto um homem quanto uma mulher. O gancho da calça também precisa ser aumentado para que fique confortável para ambos. A restrição dos modelos é que tem me encucado um pouco, quero ver homem de vestido, de saia, de “cropped”… acho que precisamos dar passos mais largos.
Acredita que a "tendência" reflita um comportamento universal da atualidade, uma luta política/social pela igualdade de gêneros?
Sim, é total reflexo de uma sociedade que cada vez mais tenta incluir e se abrir a minorias antes totalmente excluídas. É uma tendência sem volta na qual a identificação do gênero, de sexualidade e de estilos de vida já não podem mais ser reprimidos, excluídos e colocados à margem. Vivemos um momento em que as pessoas devem ser vistas enquanto pessoas, cidadãos independentes de suas escolhas e desejos. Não é mais possível uma única categorização. As pessoas têm diversos papeis sociais. Elas são múltiplas.
Em suas criações, a androginia é um elemento presente, inspirador?
Desde pequeno, apesar do gênero masculino, sempre tive enorme paixão e curiosidade por roupas femininas. Em minhas criações, trabalho o feminino de forma presente, independente de que público vai consumi-lo. Em minha linha de camisaria, por exemplo, todos os modelos podem ser usados por qualquer pessoa que se identifique com o produto, independente de gênero. Em minha última coleção, peças de renda foram compradas por clientes do gênero masculino, heterossexuais. Meu último desfile foi encerrado por modelo transexual com um vestido longo de festa branco, transparente e altamente delicado. Por que não?
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