Artes Cênicas Polêmica em espetáculo sobre Chico Buarque traz discussão sobre limites da política na arte No último fim de semana, o ator Cláudio Botelho chamou Lula e Dilma de "ladrões", atores e estudiosos pernambucanos repercutem declaração

Por: Isabelle Barros

Publicado em: 22/03/2016 15:11 Atualizado em:

Cláudio Botelho (ao centro) discutiu com o público em Belo Horizonte e teve o espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos encerrado. Crédito: Leo Aversa/Divulgação
Cláudio Botelho (ao centro) discutiu com o público em Belo Horizonte e teve o espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos encerrado. Crédito: Leo Aversa/Divulgação
 

A polarização política que cresce cada vez mais no país ganhou, literalmente, um novo palco de confronto. Uma apresentação do musical Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos em Belo Horizonte, no último sábado, ganhou um final inesperado e abrupto. Cláudio Botelho, ator e coprodutor da montagem, revoltou a plateia ao inserir um “caco” ou improvisação chamando o ex-presidente Lula de ladrão e a presidente Dilma Rousseff de ladra. Ao ver parte da plateia vaiar sua intervenção e gritar “não vai ter golpe”, a irritação do artista cresceu e a plateia se exaltou ainda mais, o que impossibilitou a retomada da sessão. O imbroglio trouxe uma pergunta difícil de ser respondida: até que ponto um artista deve inserir suas preferências políticas em seu trabalho?

Além disso, ainda houve um segundo ato do drama que a noite em Belo Horizonte se tornou: uma gravação feita sem autorização levou Botelho a ser acusado de racista, ao dizer que “o ator que está em cena é um rei, não pode ser peitado por um nego, por um filho da p… que está na plateia”. O artista afirmou que processaria quem divulgou a conversa nas redes sociais. No dia seguinte, o terceiro e último ato de toda a confusão aconteceu. Chico Buarque retirou a autorização do uso de suas músicas por Cláudio Botelho, neste e em todos os espetáculos futuros do artista, que disse ter se sentido censurado com a decisão. A apresentação do espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos que aconteceria no domingo à noite foi cancelada.

As posições políticas tanto de Chico Buarque, que sempre foi identificado como de esquerda, e de Cláudio Botelho, que critica justamente dois símbolos da esquerda no Brasil os colocam em polos opostos. Mas, para além dessa discussão de espectro político, o posicionamento do ator, que ainda falou para a plateia palavras como “isso é típico de vocês! Vão embora mesmo!”, também pode trazer à tona uma discussão sobre a relação do artista com o público, com os colegas e com sua própria obra. Este ponto é lembrado pelo jornalista e pesquisador de teatro Leidson Ferraz ao comentar o assunto. “Para além do que ele disse de Dilma e Lula, sua posição como artista é o pior. Fiquei chocado com a postura arbitrária dele no camarim. Ele foi um déspota. Esta é uma postura que vai de encontro ao teatro, que prima pelo coletivo”.

O dramaturgo e professor do curso de Teatro da UFPE Luís Reis acrescenta uma nova camada de reflexão ao chamar a atenção para a força política das artes cênicas. “Ao saber das palavras de Cláudio Botelho, lembrei da estudiosa do teatro Anne Hubersfeld que chama, com ironia, o espectador de ‘o rei da festa’. Tudo é feito para ele, mesmo sendo para provocar. Se a plateia percebe uma agressão a seus princípios, se manifesta com veemência e isso aconteceu muito também pela temperatura política atual. O teatro é sempre uma negociação política imediata. Quando o palco quer falar mais alto, o teatro se empobrece. Quando a plateia quer impor seu gosto, acontece o mesmo”.

Luís Reis também chama a atenção para a decisão de Chico Buarque de suspender os direitos do espetáculo dirigido por Botelho. “É um direito do autor suspender os direitos de um espetáculo se ele acha que a obra em questão não representa seu legado. Ainda assim, deve ter sido muito difícil para Chico Buarque tomar essa decisão, a de tirar de cartaz uma obra de arte, e isso é notável pelo histórico de censura sofrido por ele. Este episódio serve, sobretudo, para mostrar que o teatro não é uma arte de amenidades, mesmo as peças comerciais como este musical”.

O músico, ator, palhaço, bailarino e pesquisador Walmir Chagas, que acabou de completar 40 anos de carreira, tem uma visão crítica sobre a tomada de posições políticas por artistas. “Quando a corda estica, um dia parte. Se isso não acontecesse agora, aconteceria daqui a algum tempo. Nunca vi com bons olhos o artista ser governista, seja do PT ou do PSDB, ou o que for.  A arte mais bonita é a que critica, sem ser chapa-branca. O povo não tem que tomar partido. Eles são os donos do Brasil. Quem tem de vestir a camisa são as pessoas filiadas aos partidos, que devem apresentar propostas para o país. Quando se chega a um momento de radicalização, é perigoso para a democracia”.

Ao mesmo tempo, Walmir afirma que a tomada de posição de Cláudio Botelho deveria ter sido dialogada com o resto do elenco, para evitar mal-entendidos. “É preciso amadurecer. Mesmo que ele seja produtor, os atores têm o direito de dizer se concordam ou não com essa visão. A opinião deles também vale. Por sua vez, Chico Buarque fez o que achava certo. Agora, resta a Cláudio Botelho procurar músicas de um autor que aceite sua posição e avisar isso para quem assisitr o espetáculo. Quem não concordar, vá embora ou simplesmente não compareça. É uma questão de respeito”.

O ator, dramaturgo e gestor cultural Didha Pereira, que tem mais de 40 anos de carreira e, em 1973, passou seis meses preso pela ditadura militar, vê toda essa confusão com cautela. “Minha experiência no cárcere deu origem à peça A maravilhosa cueca. Quase toda noite, havia pessoas na plateia mandadas pelos militares para nos hostilizar, mas continuávamos nos apresentando porque queríamos dizer aquilo. A arte precisa de espaço para se manifestar plenamente. No entanto, esta liberdade precisa ser tratada com um cuidado extremo”.

Além disso, Didha argumenta que a obra de Chico Buarque já traz uma determinada expectativa e uma posição política clara. “Cláudio Botelho tem o direito de dizer o que quer, mas ele também tem o dever de ouvir as reações. Ele foi incoerente, pois, como artista, eu preciso escolher um autor que diga o que eu quero dizer. É como se ele desvirtuasse a obra. Uma obra de arte também é um momento de comunicação. A fala não pode ficar apenas de um lado”.

A PEÇA
O espetáculo Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos foi concebido para festejas os 70 anos de Chico Buarque, completados em 2014, e a estreia acontecem em janeiro do mesmo ano, no Rio de Janeiro. Em um roteiro que privilegia as músicas do compositor em vez do texto, se conta a história de uma trupe de teatro mambembe que encena espetáculos por onde passa. O repertório conta com clássicos da MPB como Gota d’Água, Geni e o zepelim, Roda Viva e Pedaço de mim.

O ATOR
Cláudio Botelho é ator, diretor e produtor, e junto com seu parceiro de trabalho Charles Moëller, assina alguns dos trabalhos mais bem-sucedidos dos musicais brasileiros. Os dois trabalham juntos há 19 anos e já assinaram mais de 30 espetáculos juntos. Entre eles, estão O Mágico de Oz, A noviça rebelde, Beatles num céu de diamentes, Avenida Q e Sweet Charity. Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos é a quinta parceria da dupla com o músico carioca. Entre as outras obras adaptadas, está Ópera do Malandro.



MAIS NOTÍCIAS DO CANAL