Música
Além das quebradas: rap pernambucano valoriza sotaque e busca mais espaço na capital
Rappers denunciam mazelas sociais, exaltam o amor, pregam a fé e aderem ao estilo ostentação em nova safra de produções do gênero no estado
Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco
Publicado em: 28/08/2016 15:41 Atualizado em: 26/08/2016 17:37
D'Cortesia lança novo disco e movimenta a cena rap local com letras críticas sobre mazelas sociais. Foto: Peu Ricardo/DP |
O “bagulho” aqui é outro. É a essa sentença que Victor D’C, rapper pernambucano forjado pelo manguebeat local e pelo hip hop, reduz as comparações entre o gênero popularizado no fim do século 20 nas comunidades negras dos Estados Unidos e os versos criados por ele na periferia de Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife. O bagulho é outro também para Mariana Oliveira, a MJ, rapper em atividade há doze anos no estado, expoente da luta por mais espaço para mulheres engajadas no gênero - inferior, hoje, ao ocupado por homens.
Confira o roteiro de shows no Divirta-se
D’C e MJ encabeçam dois dos principais grupos ativos na cena hip hop pernambucana - o D’Cortesia e o Donas, respectivamente -, movimentada agora por safra de projetos dedicados ao feminismo, à denúncia de mazelas sociais, ostentação e fé. A apropriação de espaços públicos, o proveito de redes sociais e a organização independente de campeonatos de hip hop mantêm os grupos ativos e cumpre propósito compartilhado por eles: estender as rimas, historicamente marginalizadas, para além das “quebradas” onde elas nascem.
“Nós damos voz a quem vem do gueto, das classes mais baixas. A diferença em relação a outros países está nos problemas que denunciamos, já que cada país tem os seus. O acesso a educação e cultura é muito precário nas periferias brasileiras, e isso se reflete no rap pernambucano, marcado pela influência do movimento mangue dos anos 1990”, diz Victor D’C sobre as características da produção local.
O grupo Donas é veterano no rap estadual e canta, entre outros temas, o empoderamento feminino. Foto: Rafael Martins/DP |
“O rap surge como alternativa de ação social, ponto de convergência entre o individual e o coletivo. Requer iniciativa e comporta uma visão de mundo, uma postura ética, um posicionamento que não se rende ao silêncio, à resignação de sofrer calado”, define o pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia Roberto Camargos, referência no assunto, em Rap e política: percepções da vida social brasileira (Boitempo, R$ 34), dedicado à análise de 10 mil composições nacionais.
Em Pernambuco, o rap se difunde nos anos 1990, contemporâneo de grupos socialmente engajados, como Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Sheik Tosado, ganhando os palcos com a Faces do Subúrbio, formada por rappers do Alto José do Pinho, na Zona Norte do Recife. “Naquela época, muito influenciados pela esquerda oposicionista na política nacional, usávamos o rap como denúncia. Isso foi se perdendo nos últimos dez anos, conforme a situação econômica melhorava entre as classes emergentes, com a chegada da esquerda ao poder. O rapper de protesto perdeu espaço nas novas gerações”, observa Sérgio Ricardo, sociólogo e presidente da Associação Metropolitana de Hip Hop em Pernambuco, para quem o surgimento do rap ostentação enfraquece a essência do movimento. “Por outro lado, há cada vez mais nomes engajados no rap regional, outro desdobramento do gênero, dedicado à valorização da cultura popular. Eles misturam rap, baião, forró, coco, maracatu, ritmos nordestinos”, explica, citando como expoente nacional o rapper cearense RAPadura.
Na esteira de expoentes brasileiros como MV Bill, Mano Brown, Emicida e Criolo, RAPadura Xique-Chico se diferencia: lança mão do sotaque nordestino e dos repentes para produzir batidas similares às emboladas. A iniciativa, praticada há 20 anos pelo Faces do Subúrbio, é replicada hoje no Agreste e Sertão pernambucanos, por nomes como Júnior Baladeira e o grupo Loucos Nordestinos, de Ouricuri e Garanhuns, respectivamente. “A proposta original do rap, no sentido do protesto, combate ao racismo, ao machismo, perdeu um pouco com a ascensão dos MCs que cantam a ostentação. Poucos ainda fazem letras críticas, mas estes se regionalizaram mais, voltaram as batidas à nossa música popular. É uma vitória”, pensa Tiger, veterano do rap em Pernambuco.
>> CENÁRIOS
Entre os desafios atuais do segmento na capital e no interior, a falta de espaços de referência na Região Metropolitana do Recife é apontada pelo movimento local como principal entrave à difusão do gênero. “Sem locais onde apresentar nosso trabalho, não conquistamos novos públicos e perdemos a oportunidade de dialogar com outros estilos musicais”, avalia o pernambucano Gustavo Pontual (ex-integrante do Inquilinus), ecoando problemática destrinchada em pesquisas nacionais.
“O processo de estigmatização que o rap e outras linguagens do hip hop sofrem, quase sempre vinculados à criminalidade e à violência juvenil, aliado ao incômodo da denúncia social que fazem, numa expressão cultural de ‘pobres, pretos e raivosos’. Isso faz com que encontre poucos espaços no mercado cultural”, escreve o pesquisador Juarez Dayrell em A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude (Editora UFMG, esgotado). “Apesar disso, os grupos crescem, pleiteiam espaços. Organizamos cada vez mais batalhas de freestyle e hip hop, nas quais se revelam novos talentos e se mantêm os veteranos”, diz Moisés Alexandre, o DJ+, presidente da Brigada Hip Hop de Pernambuco. Moisés é responsável por compilar lançamentos de rappers locais em discos produzidos por ele e disponibilizados na internet: outra estratégia para driblar a baixa oferta de palcos para os shows. É no YouTube que os repertórios ganham força.
O Espaço Cultural Arvoredo (Av. Getúlio Vargas, 144 - Olinda) é considerado, hoje, principal ponto de encontro atual de rappers e cenário de lançamentos do hip hop estadual. Gustavo Pontual, Donas, D’Cortesia, Tiger (ex-Faces do Subúrbio), DJ+, Chave Mestra, Biggie N., Poder Feminino Crew, Planeta Máfia, Tribal Fusion, entre outros representantes, participam regularmente de batalhas de breackdance e festivais de rap no local.
>> DONAS DO RAP
Donas é um dos grupos com novos projetos engajado em eventos independentes. Foto: Rafael Martins/DP |
“Nossa proposta se mantém, cantar o amor próprio, a auto estima da mulher, o empoderamento”, explica MJ. Junto com representantes locais como o Coletivo Poder Feminino Crew, o Donas integra a resistência feminina dentro do movimento hip hop local. “Muitas vezes, há eventos com 20 atrações e somente uma delas é formada por mulheres. Temos que produzir nossos próprios eventos, lutar por espaço. Ainda assim, há mais abertura para as mulheres. Há dez, 15 anos, a diferença entre os gêneros era muito mais bizarra. Somente homens se apresentavam, as mulheres apenas frequentavam as festas. Fui uma das primeiras e pagar o microfone e levantar nossas bandeiras”, lembra a rapper.
>> FORA DA CAPITAL
As sucessivas incursões na mata e em fazendas da região munido de estilingue renderam a Júnior o apelido de “baladeira” (outro nome popular para o badoque). Rejeitado na infância, o codinome foi abraçado por ele junto com a carreira como rapper, atividade pouco comum em Ouricuri, no Sertão Pernambucano, onde ganhou fama por mesclar o rap a músicas regionais.
Baladeira cativa novo público no Agreste do estado. Foto: Arquivo pessoal/Divulgação |
No Agreste do estado, o grupo garanhunhense Loucos Nordestinos cumpre papel semelhante: há dez anos, trabalham no cruzamento entre o rap e a literatura de cordel. Em 2009, lançaram coletânea em parceria com outros músicos independentes da cidade e a intitularam Quem disse que os matutos não fazem rap?, anunciando aquele que consideram o principal elemento diferenciativo entre o rap produzido em Pernambuco e o de outras regiões do país: a luta por desconstruir preconceitos em relação à cultura nordestina. “Também falamos de romance, do cenário político nacional, mas um ponto importante e frequente nas letras pernambucanas é combater a discriminação do eixo Sul-Sudeste contra o Nordeste”, avalia Tom Pimentel, vocalista do grupo. A caracterização, marcada pela associação de referências estrangeiras (bonés, correntes, calças largas, tênis e casacos esportivos) e regionais (xadrez, confecções em chita, tons terrosos e chapéus de couro ou palha), denota a intenção de universalizar o regional - e vice-versa. “Não podemos fazer uma cópia do que é produzido em outros estados brasileiros, nem no exterior. Com elementos do cordel, baião, repente e aboios, é algo só nosso”, arremata Tom.
>> NOVIDADES
Tiger
Ex-integrante do Faces do Subúrbio, grupo de referência no rap pernambucano, Tiger tem seis músicas finalizadas para o próximo disco solo, algumas já divulgadas no Soundcloud. O álbum está previsto para o início do próximo ano e sucede Poder simbólico, lançado em 2009 com apoio do Funcultura. As novas músicas têm influência do repente e do samba, desdobramento do rap tradicional desenvolvido por Tiger desde os anos 1990, voltado às críticas sociais.
Donas
Após dez anos de hiato produtivo, Mariana Oliveira e Fabiana Rossini planejam EP com inéditas intitulado Vivona, nome do projeto que marca nova fase da dupla, no qual dois bboys e uma bgirl dividem com elas o palco, além do DJ Charles Mello. O EP deve ser gravado nos próximos meses, e as letras falam, sobretudo, de empoderamento feminino. Mariana, a MJ, é considerada a primeira MC mulher do Recife.
Os rappers do D'Cortesia veem a situação político-econômica do país como pano de fundo para letras críticas. Foto: Peu Ricardo/DP |
Há quatro anos na estrada, o D’Cortesia lançou no início deste mês o primeiro disco, Pisando em cacos de vidro. Com letras críticas, politizadas, destrincham a realidade socio-econômica em que vivem e, ainda, as experiências pessoais. O trabalho é fruto de composições em conjunto, desenvolvidas desde a formação do grupo, reunido em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana do Recife.
Baladeira
Inspirado nos córdeis, repentes e nas emboladas, Júnior Baladeira se prepara para o terceiro disco da carreira - tem dois álbuns independentes lançados em 2010 e 2012. A música mais recente, Arroche o nó, gravada com os companheiros de palco Allan de Melo e Jânio Barros, foi disponibilizada no YouTube, influenciada pelos aboios do Sertão nordestino. Com o próximo disco, Baladeira pretende fortalecer o rap no agreste pernambucano e estender sua música a outros estados e regiões do país.
Loucos Nordestinos
Formado por Tom Pimentel, Tássio Japa, Tripa MC, Paulista Gus e Raquel R., o grupo lança no mês que vem o primeiro disco autoral, De rua para rua. Há dez anos em atividade, participaram de quatro coletâneas junto a outros artistas independentes da região, arregimentados pelo quinteto. Neste ano, foram destaque na cena autoral do Festival de Inverno de Garanhuns, cidade-natal dos músicos - após dez tentativas, essa foi a primeira convocação para o line-up do evento. Em janeiro do ano que vem, lançam álbum em comemoração à primeira década na estrada, com participações especiais de rappers do Nordeste do país.
Gustavo Pontual
Gustavo Pontual, outro veterano do rap em Pernambuco, canta vida pessoal. Foto: Facebook/Reprodução |
>> ENTREVISTA: RAPadura Xique-Chico, rapper cearense de referência no Nordeste
RAPadura é inspiração no Nordeste e participa do DVD d'O Rappa. Foto: Rodrigo Ramos/Fundarpe |
Como vê a cena nacional do rap atualmente? Percebe melhorias em relação aos primeiros anos de popularização do ritmo no país? E quais melhorias são necessárias?
Há melhorias, sim. hoje existem mais espaços para o rap e o hip hop. Vemos o gênero em novelas, séries, campanhas publicitárias. É uma coisa muito boa para todos, inclusive para as pessoas que produziam rap e, assistindo à tv, não se sentiam representadas. Estamos mais presentes, passamos a ser representados. Temos, ainda, a internet, além de produtores culturais independentes, pessoas organizando eventos dedicados ao gênero. O que poderia melhorar, ao meu ver, é o monopólio do Sul e Sudeste sobre o Nordeste. Os espaços deveriam ser de todos, não somente de um eixo. Que o cara lá da Amazônia visse um rap e esse rap contemplasse o carimbó, por exemplo. Isso, sim, seria um avanço. Uma quebra de monopólio, uma desconstrução de preconceitos.
Seu nome é citado pela maioria dos rappers da atualidade como fonte de inspiração. A que credita essa admiração?
Não me considero um rapper, mas um “rapentista”, que é a mistura do rapper com a cultura nordestina. Eu trago comigo uma luta antiga, travada pelos pernambucanos do Faces do Subúrbio e por outros guerreiros da região, que lutaram pela nossa causa, pela nossa cultura e pelo nosso povo, para transmitir mensagens que tivessem relação com nossa vivência, com nossa raíz. Durante muito tempo, tivemos como referência o rap norte-americano, depois, no Brasil, o rap paulista. E decidimos, a partir disso, criar os nossos meios, a nossa forma de nos comunicar dentro do rap. Chegamos a um rap tipicamente nordestino, da terra. Com as vestimentas, o sotaque, o “oxe” e o “oxente.” Fazemos rap do nosso jeito. Ser visto como uma dessas referências só me traz mais responsabilidade. Faz com que eu tenha mais compromisso ainda e mais vontade de lutar por essa causa. Quebrando toda xenofobia, todo o preconceito em relação à nossa cultura.
Poderia citar alguns benefícios da produção do rap regional?
Com o tempo, essa coisa da vergonha, que era muito comum, a vergonha de dizer que somos rappers nordestinos, isso foi superado. Começamos a transformar vergonha em orgulho. Desconstruímos preconceitos. Graças a esse trabalho, essa resistência, essa militância. Surgem muitos grupos inspirados nessa corrente, inspirados em nomes que vieram antes de mim, que representam nosso Nordeste. Isso incentiva outros projetos afins. Há muita gente, hoje, buscando a métrica usada no cordel, o repente, o coco, a embolada para enriquecer o rap. Estamos criando uma identidade nacional para o rap, com o nosso jeito, as nossas raízes.
Você participou das gravações do novo DVD d’O Rappa, filmado na Oficina de Cerâmica Francisco Brennand, no Recife. Como foi essa experiência na capital pernambucana?
Esse encontro com a galera d’O Rappa, seres iluminados, foi algo muito especial. O que fizemos juntos foi algo da alma, por isso que abriu tantas portas, tocou tantos corações. Por isso que tanta gente se emocionou, que nós nos emocionamos. Foi um momento de explosão mesmo, de realização, de contribuição humana. A gente passou a mensagem que queríamos passar: a valorização da nossa cultura, da música e da arte feitas com a alma. Toda vez que lembro, me emociono. Representar o Nordeste nesse trabalho foi uma honra. Depois disso, recebi muitos convites para shows, entrevistas. O próprio público d’O Rappa, que não me conhecia, começou a conhecer o meu trabalho, a curtir. Unindo nossos públicos, multiplicamos nossas causas.
Como vê a multiplicidade de temas no rap atual? Das críticas sociais ao rap de ostentação?
Tem espaço para tudo e para todos. O principal é manter o respeito à diversidade cultural, às diferentes formas de expressão. É preciso lembrar, nesse contexto, que algumas coisas são momentâneas e outras são eternas. Vai de cada um escolher se quer fazer um som de momento ou um som que fique para a história, que contribua com a vida dos seus semelhantes. Eu acredito muito nesta segunda linha de pensamento. É como fez Chico Science, Faces do Subúrbio, Lia de Itamaracá e tantos outros que representam a nossa cultura, a nossa história. Produziram inspirações eternas.
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