Cinema
Filme pernambucano Organismo narra o autoconhecimento de um recém tetraplégico
Longa-metragem foi dirigido pelo baiano radicado em Pernambuco Jeorge Pereira, um dos poucos cineastas cadeirantes no Brasil
Por: Emannuel Bento
Publicado em: 30/04/2019 08:45 | Atualizado em: 08/06/2020 01:18
Foto: Inquieta Cine/Divulgação |
O cineasta baiano radicado em Pernambuco Jeorge Pereira é cadeirante desde 1 ano de idade, quando contraiu poliomielite. Já adulto, trabalhou na ONG do franco-suíço Michel Benever, que ajudava jovens com lesões na coluna, muitas vezes irreparáveis, a enfrentar novos desafios cotidianos. A experiência serviu de base para construir o roteiro e idealizar a direção de Organismo, longa-metragem que estreou em 17 salas de 13 capitais brasileiras na última quinta-feira. O filme foi totalmente rodado no Recife e em Jaboatão Guararapes, com produção-executiva de Mariana Jacob e Fernanda Cordel e distribuição da produtora pernambucana Inquieta Cine. No Recife, está em cartaz no São Luiz e nos cinemas da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
A obra acompanha o arquiteto Diego, interpretado pelo mineiro Rômulo Braga (Elon não acredita na morte, de Ricardo Alves Jr), recifense de classe média que tem a rotina drasticamente transformada ao virar tetraplégico após sofrer um acidente. O personagem mantém relacionamento conturbado com Helena, vivida pela premiada franco-brasileira Bianca Joy Porte (Prometo um dia deixar essa cidade, de Daniel Aragão), que se torna uma das pessoas mais impactadas pelas mudanças. Em certo momento, a relação entre os dois passa a ser o fio condutor do filme.
“Quando trabalhei na ONG, a frase que eu mais ouvia era ‘a minha vida acabou’. Muitos homens não conseguiam entender que, na verdade, surgia ali outro modelo de vida”, diz Jeorge Pereira, graduado em cinema no curso da Aeso - Barros Melo e um dos poucos cineastas cadeirantes no Brasil. “Também notei que tinham alguns detalhes de cunho muito cultural. Os caras tratavam muito mal suas parceiras e esposas. Isso me incomodou muito. Fui me aprofundando nessas relações e percebi que os homens faziam aquilo porque estavam com medo, com uma percepção de que não eram mais homens. Como se fosse chegar o momento em que a parceria poderia precisar de um ‘homem de verdade’. Pensei que esse seria um tópico forte para fazer uma abordagem.”
Foto: Inquieta Cine/Divulgação |
Organismo foi aprovado como curta-metragem pelo Funcultura Audiovisual e levado por Jeorge até Mariana Jacob, criadora da Inquieta Cine. A ideia inicial era mostrar “como o corpo está mais do que nunca em evidência para discussão, seja para o bem ou para o mal”. O primeiro corte da produção resultou em surpreendentes 50 minutos, fazendo as produtoras-executivas questionarem se o diretor não desejava estender as imagens em um longa. “Elas tiveram a coragem de dizer que os arcos, os desenvolvimentos dos personagens, não eram de um curta. Caso não fosse um longa, iríamos perder muita coisa”, explica Jeorge.
A memória e a trajetória de Diego renderam 96 minutos ao filme, abordando uma jornada complexa e bem construída de autoconhecimento. Ao se transformar em longa, a montagem também reservou um espaço significativo para Helena, uma mulher que se mostra poderosa e determinada, trazendo problemáticas sobre sexismo ao longa. “A Bianca Joy Porte começou a me falar o que pensava sobre a personagem e assim a fomos construindo. Foi assim que chegamos em uma das cenas mais marcantes do filme, que é uma briga em que a Helena mostra sua forte personalidade. Há um atrito construtivo ali, que nos questiona as razões de ela continuar ao lado de Diego.”
Bianca Joy Porte acredita que o acidente cria uma ressignificação dos problemas do casal, que vão além da nova situação do protagonista. “O filme desvela que, no final das contas, estamos todos sob influência de uma perspectiva do patriarcado. Diego se comporta de forma medíocre, como se fosse se transformando em um parasita, e precisa redefinir a própria masculinidade para se livrar disso. Como você pode continuar sendo homem se não tem toda a potência do corpo? Enquanto Helena, na verdade, só quer que ele seja um amor ideal”, pontua a atriz, que se diz honrada por trabalhar no cinema pernambucano. “Um polo artístico de criação fundamental em um momento em que tudo está ruindo”, define.
Outro ponto que faz a obra sair do senso comum é uma narrativa menos linear, que alterna entre a temporalidade atual e a infância de Diego, servindo para mostrar a construção desse machismo cultural. “Realizamos uma colcha de retalhos para evidenciar uma visão limitadora causada pela masculinidade. Um amigo cineasta uma vez me provocou com uma pergunta que gostei muito: ‘O que muda do primeiro dia para o segundo dia na cadeira?’. Permanece a cultura. Muda o corpo. Isso que resume o longa”, finaliza o diretor.
Assista ao trailer:
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