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Com carga social, filmes do novo cinema mineiro são lançados virtualmente

Cenas de Vaga Carne (esquerda) e Sete Anos em Maio (direita)

O cinema produzido em Minas Gerais vem se destacando no circuito de festivais e prêmios brasileiros e do exterior desde meados dos anos 2010. Diferente do habitual, não é um cinema produzido exatamente na capital, mas em subúrbios da região metropolitana de Belo Horizonte, como o município de Contagem. São filmes que relatam realidades da periferia com olhares pessoais, criando uma identidade interessante para o audiovisual nacional. Sete anos em maio, de Affonso Uchôa, e Vaga carne, de Grace Passô e Ricardo Alves Jr, são dois filmes desse contexto que foram diretamente afetados pela crise do coronavírus.

Com as salas de cinema fechadas, as películas foram lançadas na internet neste mês. Ambos estão disponíveis para aluguel no site da produtora mineira Embaúba Filmes, por preços acessíveis, junto com outros 16 filmes. Após a pandemia, a ideia é que eles sejam lançados nos cinemas. Vaga carne também está disponível gratuitamente na plataforma SPCine. Ambos os filmes exploram linguagens mais alternativas de cinema e têm cerca de 40 minutos de duração.

Sete anos em maio foi rodado entre 2017 e 2018 para contar a história real de Rafael dos Santos Rocha, jovem torturado pela polícia. O próprio Rafael narra a história durante uma conversa com um colega, interpretado por Éderson Neguinho. Além do tom documental, outros blocos do filme utilizam da fabulação (a cena de abertura) e da alegoria do final, na qual um policial branco conduz uma brincadeira de “vivo ou morto” com dezenas de pessoas negras em uma rua deserta de Contagem. "A história desse filme começa na minha amizade com o Rafael, que é meu vizinho em Contagem desde 2005", diz o diretor Affonso Uchôa.

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"Tivemos uma amizade na juventude, quando fiquei sabendo o que aconteceu com ele. Sempre pensei na violência que ele sofreu. A proximidade com essa história é que deu força à motivação para realizar o filme", diz o cineasta, que codirigiu o longa-metragem Arábia (2018) ao lado de João Dumans. Esse foi um dos filmes que lançou holofotes nacionais a esse "novo cinema" realizado em Minas, junto com Temporada (2018), de André Novais, e o recente No coração do mundo (2019), de Gabriel Martins e Maurílio Martins.

"No bloco central, temos um desafio de dar um aspecto cinematográfico em cima da memória do autores. O diálogo entre os dois personagens é um trabalho de reflexão, que faz com que eles construam uma ideia do que é violência, ao mesmo tempo ocupando um lugar sobre aquilo. E que é uma extensão para toda a sociedade", explica o diretor. "Ele oscila em dois polos. É contemporâneo por ser lançado no momento em que o país que optou por dar mais poder para uma parcela da sociedade que tem a violência como comportamento. Ao mesmo tempo estamos falando de uma essência da sociedade brasileira, que tem a violência com os mais pobres como uma base de organização. São os fantasmas da escravidão e da ditadura. É um Brasil que não resolveu seus problemas."

Sete anos em maio foi selecionado para quase 40 festivais e ganhou prêmios em 13 deles, como o Janela Internacional de Cinema do Recife, Visions Du Réel, Film Madrid, IndieLisboa, Festival do Rio, FestCurtas BH e Olhar de Cinema de Curitiba. Também fez parte da seleção oficial da Viennale, do festival de Toronto. Em 2019, foi escolhido como melhor Curta ou média-metragem pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).

Múltipla linguagem
Vaga carne, por sua vez, é uma transcriação cinematográfica da peça teatral com mesmo nome, que conquistou diversas premiações, entre elas o Prêmio Shell RJ. Os diretores Ricardo Alves Jr. e Grace Passô são parceiros antigos no cinema e no teatro, a exemplo de Elon não acredita na morte. "Este `desejo de cinema', esse movimento de articulação de uma linguagem à outra é o que movimenta essa construção. E um trabalho artístico é sempre um movimento que se relaciona com trabalhos anteriores e os parceiros viabilizam esse movimento criativo”, diz Grace Passô, que está no elenco do longa No coração do mundo.

O enredo tem uma proposta bastante subjetiva, apresentando uma mulher, interpretada por Grace, que realiza um monólogo após ser invadida por uma espécie de entidade ou organismo que relata suas diversas experiência com pessoas e lugares. Para a diretora, esse enredo toca em muitas questões, com destaque para a noção de identidade. “Nele, o desejo de uma mulher por encontrar suas identificações sociais não é só afirmativo e cheio de certezas, como alguns querem crer. O desejo de nomear-se é o desejo de pertencimento, não é sequer uma escolha e, portanto, o olhar político para si mesma é uma necessidade de sobrevivência: existencial e social.”

Para Ricardo Alves Jr, a diversidade de linguagens do texto é um dos destaques do filme, que foi escolhido para a sessão de abertura da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes e esteve na programação da 70ª edição do Festival de Berlim. “O movimento de articulação de uma linguagem a outra é o que torna essa construção interessante. O texto da peça também foi publicado, pela editora Javali. Portanto, Vaga carne transita entre três linguagens: a literatura, o teatro e o cinema.”

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