Gravações paralisadas e produções canceladas, o audiovisual foi com certeza uma das áreas mais afetadas pela pandemia do coronavírus. Sem poder reunir grandes equipes nos set de filmagens, o ramo presenciou uma redução considerável de obras sendo feitas, pela dificuldade de atender aos protocolos de segurança. Porém, um outro ramo do audiovisual, ainda muitas vezes esquecido, tem se destacado justamente por sua capacidade inata de se adaptar: o da animação.
O estudioso e professor de animação da UFPE, Marcos Buccini, afirma que “enquanto o cinema tradicional teve vários meses de recesso durante a pandemia, a produção pernambucana de animação nunca parou”. Isso acontece porque o trabalho remoto na animação já era uma realidade antes mesmo da pandemia, com produções utilizando a internet para trocar arquivos com rapidez ou gerenciar remotamente uma equipe. Outra razão é que, diferente do cinema presencial, a maioria dos animadores profissionais já mantém algum equipamento pessoal em casa para oferecer seus serviços como freelancer. “É uma dinâmica que permite que você tenha uma equipe totalmente separada, cada um em um lugar do planeta, e mesmo assim faça um filme coeso”, complementa.
Em 2017, o pesquisador lançou o livro “História do Cinema de Animação em Pernambuco”, no qual catalogou mais de 200 filmes com o objetivo de dar visibilidade aos autores e obras locais que, segundo ele, “são deixados de lado nos livros, mesmo quando se fala de cinema pernambucano”. Analisando a conjuntura atual, Buccini diz esperar que esse hiato de investimentos não prejudique tanto a produção e destaca o surgimento e continuidade de várias séries animadas de sucesso, como o Mundo Bita, que têm sido os projetos mais rentáveis do estado.
Vários ex-alunos do professor hoje trabalham remotamente para diversos lugares do mundo, como França e Noruega. Uma dessas pessoas é a pernambucana Karina Monteiro, 33 anos, que se especializou no trabalho remoto e atualmente anima para produtoras de todos os portes, como TV Brasil, Netflix e Dreamworks, ao lado do marido, Flavio Monteiro. Karina é de Belo Jardim, cidade do Agreste pernambucano, e desde sempre teve que criar sua própria estação de trabalho em casa para conseguir oportunidades. A animadora concedeu uma entrevista exclusiva para o Diario, confira a seguir:
Entrevista com Karina Monteiro:
Quando você morava em Belo Jardim, como foi trabalhar com animação em um lugar que não tinha produtoras locais? Como você fez isso?
Justamente por estarmos em um lugar que não tinha produtoras locais, iniciamos com esta modalidade de trabalho remoto. Os primeiros projetos conseguimos através de professores, Buccini foi um deles. Depois, através das redes sociais, descobrimos os contatos dos estúdios nacionais e internacionais e mandamos nosso portfólio, e para nossa surpresa o retorno foi excelente.
Quais são os equipamentos essenciais que você utiliza para trabalhar em casa?
Além de computadores com capacidade gráfica muito boa, precisamos de mesas de desenho digital. Além dos softwares de animação que o mercado costuma utilizar.
Você acha que a animação é uma saída para a produção audiovisual durante a pandemia?
Acho que sim. Uma produção de animação pode ser quase toda feita remotamente, o que acaba possibilitando a adaptação das produções nesse período de pandemia. Hoje temos a nossa própria empresa, Karina e Flavio Animações. Em três anos de mercado, trabalhamos para mais de 40 estúdios, em quase 60 produções.
De que forma as produções animadas foram afetadas pela pandemia no mundo?
Com a pandemia, os estúdios maiores tiveram que se adaptar à modalidade Home Office no mundo todo. Isso nos possibilitou trabalhar em estúdios que antes só seria possível presencialmente. Atualmente moramos em Curitiba e fazemos parte da equipe de séries como “Rick and Morty” e “Paradise PD” da Netflix, além de estarmos na criação de “Nahuel e o livro mágico”, uma co-produção Brasil-Chile que será lançada em breve.
Para você, quais os pontos positivos e negativos do trabalho remoto?
O ponto positivo do trabalho remoto é poder trabalhar para vários estúdios nacionais e internacionais, em vários projetos ao mesmo tempo. O ponto negativo está na dificuldade de organizar os horários e separar os momentos da vida pessoal da profissional, mas com organização é possível equilibrar. No nosso caso, o profissional sempre acaba “vencendo” (risos).
Ainda que menos prejudicado que outros setores, o trabalho dos animadores não deixou de ser modificado pela pandemia. Júlio Cavani, curador do Festival Animage desde 2015, lembra como a nova rotina pode afetar a produtividade desses profissionais: “Existem questões psicológicas, emocionais em relação à pandemia e também à nova rotina doméstica. Quando você fica em casa, acaba tendo que se dividir mais entre o trabalho e as atividades do lar”.
A crise no setor cultural como um todo modificou os tipos de projetos mais requisitados durante o último ano. O setor privado passou a priorizar pequenas produções como vinhetas, videoclipes e vídeos publicitários, em detrimento das grandes produções. Já do lado público, houve corte nos investimentos e adiamento de editais.
Segundo Cavani, ainda não é possível avaliar o impacto da pandemia sobre essa produção em questão de volume. Como o festival não foi realizado em 2020, os curtas-metragens inscritos para a mostra competitiva irão disputar na próxima edição presencial do evento. Somente quando forem novamente abertas as inscrições para essas mostras competitivas e chegarem os filmes produzidos em 2020 e 2021 é que a comparação será feita pelos realizadores.
Contudo, o curador acredita que o ritmo de produção local ainda está muito bom, e que a maior dificuldade está na verdade na etapa final do percurso de um filme: "Uma coisa que afetou muito foi a questão da distribuição e lançamento. Tem filmes que já estão prontos, mas não foram lançados porque os produtores ainda estão decidindo se vale a pena colocar na internet, liberar para festival ou esperar uma estreia presencial”.
É preciso se reinventar
Nem todo tipo de animação, porém, pode ser facilmente feita em casa. A técnica de Stop Motion, por exemplo, costuma exigir um cenário muito bem montado e iluminado no qual serão feitas as fotos. Em uma tentativa de popularizar a técnica, a dupla de realizadoras Marila Cantuária e Chia Beloto, fundadoras da Produções Ordinária, fazem uma oficina no Animage deste ano intitulada “Stop Motion Dendicasa”. Marila comenta como o uso do celular pode ser uma ferramenta de democratização da arte das imagens mesmo para quem não possui um aparato ideal de luz e lentes: “Existem aplicativos de animação 2D e Stop Motion disponíveis de forma gratuita para baixar. Claro que vão haver limitações, devido a grande desigualdade social, mas é possível sim fazer animação dentro de casa usando o celular a partir de ideias simples”.
Enquanto novas produções não chegam ao público, uma ótima oportunidade para prestigiar o cinema de animação de Pernambuco e do mundo é através do Festival Animage, que acontece esse ano em formato virtual, tendo início na sexta-feira (19) e vai até o dia 28 de março. A experiência de compartilhar a sessão e ver as obras na tela do cinema não é a mesma, mas para Júlio Cavani “esse formato digital vai permitir que pessoas de outras cidades, estados e países conheçam e entrem em contato com o estilo e a proposta artística do Animage, assim como perceber o que queremos mostrar dentro desse universo gigantesco que é o mundo do cinema de animação”.
O professor Marcos Buccini, citado no início da reportagem, também está presente no Animage Digital deste ano como animador com o videoclipe “Eu o declaro meu inimigo”, da banda recifense de hardcore Devotos. O clipe experimental reuniu cerca de 127 animadores do Brasil inteiro, desde nomes renomados como Marão, Rosana Urbes e Aída Queiroz, até estudantes de animação e crianças.
Também na programação do Animage, o painel “Produção de Longas de Animação”, comandado por Letícia Friedrich e Ulisses Brandão, promete abordar um pouco mais sobre como a pandemia afetou a forma de trabalhar do cinema de animação. A conversa vai acontecer no dia 23, a partir das 17h, e é apenas parte da programação que você pode conferir completa no site animagefestival.com.br.
O trabalho dos animadores é, por essência, um trabalho solitário. Não existem grandes equipes no set de filmagem com atores, figurantes, maquiadores e figurinistas, como no cinema live action. Contudo, enquanto as medidas de isolamento social precisam ser respeitadas, essa arte surge como saída para a indústria e válvula de escape para o público. “Acho que, por tudo isso, faz sentido investir em produções de animação como solução criativa para seguir contando histórias e entretendo as pessoas, através do audiovisual”, encerra Marila.
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