MÚSICA

'O neoliberalismo já era', diz Alceu Valença, que lança álbum gravado em isolamento

Publicado em: 12/03/2021 09:49 | Atualizado em: 28/09/2021 11:28

 (Foto: Leo Aversa/Divulgação)
Foto: Leo Aversa/Divulgação

No aniversário do Recife e Olinda, quem ganha o presente é o Brasil. Alceu Valença, um dos cânones da música pernambucana, divulga nesta sexta-feira (12) o primeiro álbum de uma série de três lançamentos gravados no ano passado durante o isolamento social na cidade onde reside, o Rio de Janeiro. Sem pensar no amanhã é um álbum non-stop, criado para ser ouvido de uma vez só, com nove releituras de clássicos e um samba acústico inédito em homenagem ao carnaval de Olinda - que dá título ao álbum. Tudo foi gravado em voz e violão, mostrando a versão mais cristalina na voz do artista. É como se Alceu cantasse bem ao nosso lado.

Em entrevista ao Viver por telefone, Alceu explicou que pensou no álbum como uma narrativa cinematográfica. "A câmera começa sobrevoando a praia de Boa Viagem com La belle de jour, e depois segue para igrejas de Olinda com Mensageira dos anjos. Viajamos no Táxi lunar, no trem da Estação da luz e vamos até a Ilha de Itamaracá com Ciranda da rosa vermelha. Em Chego já, caímos no frevo de blocos históricos, depois seguimos para o mar em Pirata José, celebramos a magia do carnaval em Sem pensar no amanhã, uma música que criei justamente como um encaixe do que estava falando nesse roteiro", diz.

"No carnaval, suguei seus lábios / E apaixonado, todo sujo de batom / Saí descendo pelas ladeiras, com Olinda guerreira, sem pensar no amanhã", diz a faixa-título, que já nasce parecendo um clássico. Íris e Marim dos Caetés encerram o disco, trazendo Alceu em essência artística regional. Valença também conversou sobre o processo de criação e produção do álbum, como foi passar o carnaval em casa e a sua expectativa pela vacinação ("não importa qual seja a vacina, da China, da Cochinchina"). Sobre o pós-pandemia, cravou: "O neoliberalismo já era."

Entrevista - Alceu Valença, cantor

Como as gravações do isolamento se transformaram em uma série de lançamentos?
Seguindo as normas do pessoal da saúde, eu não saio de casa. Dentro de casa, comecei a tocar violão pela noite, pois pelo dia um vizinho fica concluindo uma obra que já faz quase um ano (risos). A minha esposa ficava assistindo filmes, dizendo: “Tá lindo! Que coisa bonita!”. Eu achava que ela estava falando do cinema, mas ela veio me dizer que era porque eu estava tocando. Bom, daí fui criando um gosto, tocando sempre, e de repente já estava criando um roteiro cinematográfico, em que uma música casava com a outra. Você pode ouvir o disco com faixas independentes, mas quando você escuta de uma vez só, é uma viagem, você vai entrando nessa história.

Em tempos normais, você viaja muito. Essa narrativa do álbum foi criada na impossibilidade de viajar?
Sim, eu tinha 45 shows marcados para o período pós-carnaval de 2020 no Brasil, e mais 16 na Europa. Eu não costumava passar nem dois dias aqui em casa, no Rio. Era o tempo todo na estrada. Fazia muitos anos que eu não tinha tempo de tocar violão. Não toco nem quando vou para Olinda, só quando chega alguém, em nome da arte. A arte é magia, por isso eu fiz isso. Eu tinha um tio chamado Rinaldo, que uma vez disse que saiu de casa e o guarda-chuva falou com ele: “Seu Rinaldo, não vai me levar, não? Me leve”. Ele ficou com pena e falou: “Venha cá…”. O mesmo aconteceu comigo. O violão falou para mim: “Alceu, você não quer vir tocar não?”. Eu disse: “Não, menino, tô lendo um livro… Quer saber? Eu vou, nunca mais toquei...” (risos).

Na sua opinião, qual é a riqueza estética da voz e violão? Por que manter esse formato na gravação?
O instrumento ficou muito conectado com a minha voz. Eu tenho várias vozes, por dizer assim. Eu canto frevo em um tom, mas se for uma música mais sertaneja, será em outro tom. Esse disco é algo intimista. A única coisa boa da pandemia foi isso. Eu gravei tudo muito rápido, mas aí tivemos de partir para a mixagem e tivemos de deixar as passagens da música iguais de uma para outra. Eu me encontrei com Rafael Lemos e Yanê Montenegro, que foram os únicos que vi pessoalmente. A gente sempre fazia o teste da sorológico. Eu já fui infectado, mas não quero correr o risco passar para ninguém. Estou esperando a vacina agora. Pode ser da China, da Cochinchina, de Oxford, para mim é vacina. Se passou pela Anvisa, eu tomo.

Falando em pandemia e vacina, como foi não brincar o carnaval?
Eu brinquei com o carnaval tocando música, essas que estou lançando, então de certa maneira eu viajei no carnaval. Mas é chato, eu sou um artista com uma musicalidade muito grande nessa festa. No São João também, eu não viajei pelo interior, mas fiz algumas lives, uma delas foi em Minas Gerais, com a Orquestra de Ouro Preto.

O que podemos esperar dos próximos dois álbuns?
Todos os outros também contam histórias, com as músicas uma relacionadas com a outra. Eles também têm músicas inéditas, incluindo outro samba.

E o que você espera para o Brasil nos próximos anos?
Eu gostaria que o Brasil se transformasse depois da pandemia. Queria um país mais solidário, mais justo e igualitário. Eu ando muito em Lisboa, em Portugal, e sei que tem um pedinte perto do Castelo de São Jorge. No Rio ou no Recife, a mendigagem é uma coisa absurda. Essas pessoas são seres humanos, deveriam ter acesso à saúde, educação, moradia. Não quero posar de bonzinho, não tenho vínculos empregatícios com minha banda, pois todos trabalham com muitas pessoas... Mas na pandemia, estamos ajudando todos eles. Se uma grande corporação ganha quase 50 bilhões por ano, não dá para colocar um imposto nisso? Para poder pagar uma vida digna para pessoas carentes? Claro que poderia. Eu acho que o povo brasileiro precisa se reinventar. O neoliberalismo já era. Tem que inventar outra história, onde os grandes pagam impostos. Teremos uma sociedade muito mais justa e solidária. Eu acredito que essa será uma pauta pós-pandemia, no mundo todo. Inclusive até nos Estados Unidos, tá? Porque com uma economia daquela, eles não deveriam ter tantas pessoas morando na rua.

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