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'Assassinos da Lua das Flores' expõe com minúcia os horrores vividos pelos povos Osage

Em resgate histórico inestimável e escala de grande épico americano, Scorsese adapta best-seller detalhando a conspiração maquiavélica do homem branco no começo do século 20

Os acontecimentos retratados no livro best-seller 'Assassinos da lua das flores', que serviu de base para a superprodução dirigida por Martin Scorsese, em cartaz nos cinemas, estão entre os mais importantes da história norte-americana do começo do século passado, mas, surpreendentemente, não ganharam a devida notoriedade na mídia. Ao menos até pouco tempo atrás. Repórter da New Yorker, David Grann dedicou anos de sua vida pesquisando a perturbadora história dos assassinatos em série de membros da tribo Osage durante a década de 1920, no estado de Oklahoma. Esses povos indígenas, que haviam sido expulsos de suas terras originárias e mandados para esta região rochosa, acabaram descobrindo uma das maiores reservas de petróleo dos Estados Unidos, tornando-se, naquela época, as pessoas de maior renda per capita do mundo.

Os Osage passaram a ser mortos de forma brutal e, durante muito tempo, os crimes foram sendo dissolvidos em falsos testemunhos, ocultações de provas e desinteresse da jurisdição local. O crescimento desse chamado “reino de terror”, porém, deu ao caso uma dimensão nacional. Nasceu, neste momento, a primeira grande investigação de homicídios por parte do Federal Bureau of Investigation (FBI), então dirigida por J. Edgar Hoover e cuja linha de frente deste trabalho ficou a cargo do obstinado Tom White.

Adaptando a obra em um mais um projeto de escala ambiciosa, Scorsese e o co-roteirista Eric Roth se mantém fiéis ao resgate histórico do livro e aos seus principais desdobramentos, mas alteram o foco dramático. Enquanto o texto escrito era contado por um viés de reportagem, destacando objetivamente os fatos e priorizando o enredo policial, Assassinos da lua das flores, o filme, opta por outros pontos de vista: o dos criminosos e o dos Osage. O protagonismo acaba ficando com Earnest (Leonardo DiCaprio), homem branco que, influenciado pelo poderoso tio William Hale (Robert De Niro), casa-se com Mollie (Lily Gladstone), membro de uma das famílias mais ricas da tribo e de quem os parentes são paulatinamente aniquilados.

Reconhecido por filmes de máfia liderados por homens moralmente complexos, como Os bons companheiros, Cassino, Os infiltrados e, recentemente, O irlandês, mas também pela sua visão respeitosa de distintas culturas, ao exemplo de Kundun e Silêncio, Scorsese une em Assassinos da lua das flores sua bagagem de décadas com tramas de crime à sensibilidade admirável com a qual representa a cultura Osage. Consciente de que, enquanto homem branco, não estaria na melhor posição para narrar esses fatos unicamente pelo olhar de Mollie e de sua família, o cineasta divide a visão do público com total transparência entre a conspiração das mortes e a repercussão dela nos indígenas.

O cinema de Scorsese é também célebre pela fotografia exuberante e pelo uso intenso da música, mas, ainda que tais características estejam presentes, o longa encontra em suas quase três horas e meia de projeção bem mais tempo para silêncios do que para estilizações sonoras, ao passo que a fotografia (incansavelmente linda) pouco a pouco vai se fechando nas resoluções íntimas, em detrimento de confrontos épicos tradicionais.

Embora a investigação em si – central na base literária – seja comprimida em função da minuciosa caracterização desses personagens e de cada uma das maquinações perversas, Assassinos da lua das flores compreende em seus momentos pesarosos de quietude e nas suas lacunas propositais que o coração da história está no horror do apagamento, do esquecimento e da impunidade. E impressiona sempre como alguém de tamanho conjunto da obra ainda seja capaz de depurar e subverter o próprio olhar, a partir não apenas da insaciável curiosidade pelo mundo, mas especialmente pelo imenso potencial de empatia.

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