CINEMA

Luz, câmera e ilusão

Terror 'Entrevista com o demônio' emula com cuidado a estética de talk show dos anos 1970 e atuação de David Dastmalchian segura o clima de tensão, até não conseguir mais

Publicado em: 04/07/2024 06:00 | Atualizado em: 04/07/2024 09:49

 (Diamond Films/Divulgação)
Diamond Films/Divulgação
Após o trágico falecimento de sua esposa, o apresentador de um programa de televisão nos anos 1970, Jack Delroy (David Dastmalchian), está tentando desesperadamente recuperar a audiência e, assim, evitar ser tirado do ar. O Halloween de 1977 se torna, aparentemente, a ocasião perfeita para trazer o sucesso de volta ao quadro de entrevistas, no qual Jack resolve chamar como convidadas uma psicóloga paranormal (Laura Gordon) e uma jovem retratada no livro dela (Ingrid Torelli), única sobrevivente de um suicídio em massa ocorrido durante um ritual satânico. No início do programa, tudo parece estar sob controle, mas, à medida em que novas provocações são feitas a fim de crescer as respostas da plateia, forças sobrenaturais colocam todos do estúdio em perigo.

Em cartaz nos cinemas, o terror Entrevista com o demônio conquistou repercussão notável no primeiro semestre quando foi exibido no festival anual South by Southwest, no Texas, e, desde então, vem sendo considerado um dos melhores do gênero de 2024. A premissa e o formato – em que o espectador acompanha (quase) tudo como se fosse uma versão editada de um programa real de talk show – chama atenção sobretudo por remeter ao cult-clássico Ghostwatch, telefilme exibido em 1992 na BBC na noite de Halloween que conseguiu enganar e apavorar por algum tempo a plateia do Reino Unido (não tão diferente do que viria a ocorrer com o mais emblemático A bruxa de Blair, em 1999, cujo golpe de marketing ganhou dimensão mundial).

É evidente que Entrevista com o demônio não possui a menor pretensão de reproduzir o impacto de qualquer um dos precursores do falso-documentário, mesmo porque, apesar de não ser propriamente um astro, David Dastmalchian é um rosto conhecido de pequenos papeis em vários blockbusters e ganha aqui numa rara e excelente oportunidade de protagonismo. É o comprometimento do ator, na verdade, que mantém o longa comandado pelos irmãos Colin e Cameron Cairnes bastante envolvente durante seus breves 90 minutos de duração.

Entrevista com o demônio tem, sim, um trabalho formal cuidadoso na reconstituição desse cenário de televisão da época, ainda que não tente disfarçar o uso de inteligência artificial e outros recursos contemporâneos para emular a estética setentista. A primeira metade é particularmente interessante no modo que desarma o público para a possibilidade das ameaças sobrenaturais surgirem e está sempre brincando com o ilusionismo da imagem, quase como um comentário autoconsciente sobre seu próprio método: um filme que “forja” um aspecto antigo falando sobre a dissimulação daquilo que se assiste.

Essa brincadeira com realismo e sobrenatural, aliada à performance notável de Dastmalchian, é o que o filme tem de melhor a oferecer, já que, próximo ao clímax, o roteiro apela para as resoluções mais rápidas e dramaticamente abruptas imagináveis, como se não soubesse levar sua premissa até as últimas consequências e precisasse de recursos oníricos que aqui soam evasivos.

O que tornava Ghostwatch tão interessante, além do pioneirismo da ideia, era a gradação com que a paranormalidade tomava conta da narrativa até o momento em que ela a desestabilizava completamente. Já em Entrevista com o demônio, apesar da muito boa construção plástica e da condução atmosférica eficaz dos dois primeiros atos, parece que os diretores preferem o lugar da colagem visual esperta para amarrar a experiência, o que torna o saldo bem mais inofensivo e bem menos memorável do que poderia. No fim, o preço do sucesso vem tão alto para Jack quanto o preço da estilização vem para o filme. 

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