MOSTRA DE SP

'Lispectorante' reflete memórias da praça Maciel Pinheiro em tom de psicodelia carnavalesca

Novo filme da diretora pernambucana Renata Pinheiro, de 'Amor plástico e barulho' e 'Carro rei', evoca Clarice Lispector para dialogar com o imaginário do centro do Recife

Publicado em: 27/10/2024 13:40 | Atualizado em: 27/10/2024 15:06

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A memória recifense, da praça Maciel Pinheiro e de Clarice Lispector se entrelaçam de maneira nostálgica e visualmente vibrante no psicodélico Lispectorante, novo longa-metragem da diretora pernambucana Renata Pinheiro (Amor, plástico e barulho e Carro rei), lançado no Festival do Rio 2024 e, no último sábado (26), exibido na programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O centro do Recife é o cenário em que se transcorre praticamente toda a narrativa do filme, que trata de Glória Hartman (Marcélia Cartaxo), uma artista que retorna à capital onde tenta se estabelecer com um ofício, conhece uma pessoa na região que balança seu coração e, principalmente, descobre uma fenda em ruínas na casa onde a poetisa ucraniana morou durante a infância. Passada a algumas semanas do carnaval, a história parte de uma base realista para revelar elementos fantásticos e encantatórios, que remetem tanto ao imaginário festivo e musical da ambientação quanto à poética de Clarice.
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O olhar doce inconfundível de Marcélia Cartaxo é, como de se esperar em um filme com seu protagonismo, o eixo sobre o qual a forma e o tom do longa vai se construindo. Glória não é uma personagem tão bem escrita quanto a belíssima performance da atriz faz parecer, mas Lispectorante está menos interessado no desenvolvimento de um arco e mais na atmosfera lisérgica do palco meio triste em que aquelas ruínas se transformam. Existe também uma naturalidade muito oportuna do tratamento da sexualidade dessa protagonista, a partir de seu encontro com um artista de rua, que expande um pouco mais sua concepção e ajuda a criar algumas sequências imageticamente muito estimulantes.

Renata Pinheiro começou sua carreira no cinema como diretora de arte, ganhando notoriedade pelo seu trabalho no icônico Amarelo manga, de Cláudio Assis, e seu cuidado com o design de produção, sempre presente em seus próprios longas, se mostra aqui talvez mais artesanal do que nunca. Desde a cena da protagonista criando uma estátua de isopor filmada como se fosse neve até as cores esverdeadas, às vezes fosforescentes, com que filma a tarde recifense, Lispectorante reflete de maneira bem humorada e melancólica (duas características inerentes à figura de Cartaxo, vide sua icônica Macabéa de A hora da estrela, adaptado da própria Clarice Lispector) sobre a memória da autora como uma presença que influencia todos os aspectos artísticos que rodeiam o imaginário da cidade.
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O roteiro se fragiliza muito na tentativa de criar conflitos mais concretos, visto que sua caracterização humana é aquém da sua concepção climática. Os obstáculos colocados na frente da personagem parecem arbitrários, mal estruturados e nunca chegam de fato a uma resolução satisfatória. As sequências de uma psicodelia mais evidente protagonizadas por Grace Passô, que intercalam a linha narrativa principal, podem soar avulsas também para alguns, mas encontram um diálogo sensorial mais fluido com a ambiência onírica e cheia de confetes pré-carnavalescos do dia a dia de Glória. 

A cena que se passa no Hotel Central é particularmente bonita no modo como se entrega totalmente ao clima alucinógeno, permeado por um registro declatório que brinca com outras memórias entranhadas na cidade, ao exemplo, neste caso, de Carmen Miranda. A câmera da diretora explora essa geografia reconhecível para o público do Recife frequentemente como se estivesse sentada na cadeira onde a estátua do Circuito da Poesia da autora-título fica, na praça Maciel Pinheiro, e, dessa forma, soa sempre como uma tentativa de captação de algo mágico, que pode aparecer a qualquer momento - e, aparecendo ou não, já está vívido no sorriso da protagonista.
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