CINEMA

Ambiciosa e imperfeita fábula de Francis Ford Coppola, 'Megalópolis' é manifesto pela liberdade criativa

Ideia para o filme surgiu há mais de 40 anos e ele acabou tendo que ser financiado pelo próprio cineasta, que investiu cerca de $ 120 milhões na produção

Publicado em: 31/10/2024 06:00 | Atualizado em: 31/10/2024 01:28

 (Adam Driver vive arquiteto visionário com o plano de reconstruir a sua cidade futurista a partir de um material de construção revolucionário. O2/Divulgação)
Adam Driver vive arquiteto visionário com o plano de reconstruir a sua cidade futurista a partir de um material de construção revolucionário. O2/Divulgação

Um dos títulos mais comentados entre as ‘grandes produções que nunca saíram do papel’, Megalópolis finalmente ganhou a luz do dia e acaba de entrar em cartaz após exibição especial de encerramento da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na presença do diretor Francis Ford Coppola. Gestado por mais de 40 anos, com sua primeira versão escrita em 1983, este épico de proporções oníricas afastou os grandes estúdios desde a concepção devido ao teor artístico invendável, o que levou o realizador a colocar cerca de $ 120 milhões do seu próprio patrimônio na produção. O resultado desse risco deliberado é um paraíso da liberdade criativa: um artista na rara absoluta posse dos meios fazendo um manifesto tão cheio de alvos e intenções que é, às vezes, engolido por ele mesmo – mas sempre com sabor de esperança.

 

Megalópolis trata da cidade retrofuturista Nova Roma, construída sobre as ruínas de Nova Iorque, onde duas figuras disputam o poder: o arquiteto visionário Cesar Catilina (Adam Driver), inventor do material revolucionário Megalon e com um ambicioso plano de reconstruir a cidade a partir dele, e o prefeito Cícero (Giancarlo Esposito), que se opõe às ideias do adversário e possui preocupações de administração distintas. Figuras com interesses diversos surgem, como a apresentadora Wow Platinum (Audrey Plaza) e o ególatra Clodio Pulcher (Shia LaBeouf), primo de Cesar.

 (O2/Divulgação)
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O paralelo entre as fundações políticas da sua nação e o período da República Romana é livremente baseado em uma conspiração famosa da Antiguidade, na qual o patrício à beira da falência Lúcio Sérgio Catilina tentou assassinar o cônsul eleito Cícero e outros políticos, com a intenção de incendiar a cidade depois. Megalópolis aproveita ainda os mistérios e especulações da base histórica para tornar a trama ainda mais ambígua, como a sugestão de que o protagonista teria assassinado a esposa (tal qual foi acusado Catilina, 63 a.C), mesmo que atribua novos significados à maioria dessas inspirações e personagens.

 

Coppola comandou alguns dos grandes clássicos da história – a trilogia O poderoso chefão, A conversação, Apocalypse now –, mas não filmava desde Virgínia, de 2011, e demonstra, aos 85 anos, uma vontade de testar seus limites e se renovar tão grande quanto no início da carreira. É cristalino como ele, incontornavelmente, acumulou nesse hiato todos os marcos políticos e sociais possíveis do seu país. Do 11 de setembro ao 6 de janeiro, inúmeras referências históricas brotam em Megalópolis, cujo efeito é maior no campo das ideias e da composição plástica do que na construção dramática.

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As comparações históricas possuem um lado cômico muito deliberado e simultaneamente uma convicção camp que, por si só, já soa um retorno a um tipo de cinema que o sistema industrial não prioriza mais há muitos anos. As cores, os figurinos e o maneirismo da iluminação dos cenários remetem mais ao Coppola de O fundo do coração do que aos seus trabalhos mais conhecidos, enquanto a arbitrariedade da fantasia soa como um grito de guerra pessoal, uma forma de expandir e experimentar com seus conceitos que é sensorialmente muito bem vinda. 

 

Ainda assim, compreendendo as razões altamente pessoas de o cineasta quebrar de modo quase anárquico (mesmo que rigoroso) a lógica sequencial que tantos esperariam de um épico, Megalópolis tenta, sim, investir em relações dramáticas que necessitam de certa praticidade que, nos seus melhores momentos, ele é capaz de fazer como poucos. Em particular, a relação amorosa à Romeu e Julieta entre o personagem de Adam Driver e a filha do seu rival, vivida por Nathalie Emmanuel, tem uma funcionalidade simbólica evidente e rende belíssimas imagens, mas parece perdida entre a intensidade de sentimentos humanos, nos quais o filme acredita, e uma grande ironia farsesca. 

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Justamente por esse desequilíbrio muito provavelmente proposital, atuações como as de LaBeouf, Plaza e John Voight, que se entregam desde sempre a personagens mais caricatos e exagerados, tornam-se as mais coerentes com a proposta de encenação e as mais divertidas de acompanhar também. Mesmo porque os paralelos que eles representam são assumidos de maneira menos críptica do que no caso da figura ambígua representada por Driver.

 

Como experiência narrativa de intrigas, paixões e conspirações, portanto, o épico de Coppola provoca pouco envolvimento, em última instância. É um projeto que se apresenta em sua grandiloquência fantasiosa já nos primeiros minutos, com o protagonista paralisando o tempo, mas que acaba penando para engajar o público quando a trama exige um senso prático de causalidade. Ele aposta na sensorialidade e na artificialidade, no acúmulo de conceitos, mas fica em um limbo entre a farsa, a ironia e uma estrutura linear mais convencional.

 (O2/Divulgação)
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Permanece, porém, o fascínio em ver algo dessa escala visual e temática se concretizando na tela tão radicalmente. É na imperfeição que reside boa parte da beleza de Megalópolis, filme despreocupado com convenções comerciais que, através dos planos agigantados de Cesar, se revela um atestado sobre seu próprio criador e sua criatura. Um manifesto metalinguístico em que esse criador se depara com uma infinidade de obstáculos e visualiza, ainda, várias possibilidades luminosas.

 

Coppola, afinal, também controla o relógio por meio do cinema e, como pessoa, externaliza na sétima arte a angústia em ver ameaças cíclicas se avolumando. A utopia que ele defende é, talvez, aquela na qual os artistas têm todo o tempo e a liberdade do mundo para dar vida à imaginação. Dificilmente haveria demonstração maior de fé no poder da criação.

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