MOSTRA DE SP

Vencedor da Palma de Ouro, 'Anora' é uma fábula trágica travestida de comédia destrambelhada

Um dos mais aguardados do ano e forte candidato ao Oscar, filme tem atuação poderosa de Mikey Madison como uma complexa personagem em uma espiral de acontecimentos absurdos

Publicado em: 26/10/2024 06:00 | Atualizado em: 23/10/2024 13:01

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Grande vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024 e um dos filmes mais esperados deste ano, Anora chegou ao Brasil em primeira mão pela 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e, apesar de sua estreia comercial ter sido adiada para janeiro de 2025, ele já está criando há muito tempo uma poderosa expectativa e se consolidando entre os favoritos da temporada de prêmios rumo ao próximo Oscar.

Dirigido e escrito por Sean Baker (Tangerine, Projeto Flórida), o filme tem uma das protagonistas mais marcantes dos últimos anos, interpretada por uma atriz que, através dela, teve e terá sua carreira transformada. Mikey Madison interpreta Ani, uma stripper que, em um dia comum de trabalho em um clube do Brooklyn, em Nova York, conhece Vanya, um jovem russo milionário que a contrata para ser sua namorada de luxo por uma semana.

O deslumbre das festas, cassinos, clubes e baladas da cidade embriagam Ani e a plateia no primeiro ato de Anora, que o diretor filma como se ele mesmo estivesse também inebriado por tudo aquilo, na urgência de quem parece ter apenas alguns minutos em cada locação para rodar e com a velocidade da montagem de quem quer transmitir uma sensação contínua de maravilhamento, sem qualquer pausa para descanso. Essa energia solta e delirante em que os dois personagens se colocam leva à decisão intempestiva de um casamento, o que vai desencadear a fúria dos pais magnatas de Vanya.
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No momento em que os capangas da família oligarca aparecem na mansão onde os dois estão vivendo para forçá-los a anular o matrimônio, o paraíso desaba completamente e o humor leve e livre da primeira parte se transforma em uma comédia deliberadamente destrambelhada que mescla um absurdo quase de fábula com um realismo um tanto cruel. Sean Baker se tornou célebre pelo humanismo na sua retratação de grupos marginalizados da sociedade americana e aqui, através de uma protagonista inferiorizada por sua profissão de stripper, ele consegue problematizar o tema sem vitimizações ou lamentações.

Ani é uma personagem viva, cheia de desejos e angústias, da qual conhecemos mais pela ação imediata do que por explicações prévias. Tudo no filme, na verdade, possui essa força (cômica e dramática) do agora: os blocos de cena são longos e só terminam no seu tempo particular, sem a necessidade de obedecer a padrões de rimo – o que gera também algumas repetições e arestas narrativas. Esse lado mais desengonçado é justamente um dos pontos de humanização mais fortes da direção e do roteiro de Sean Baker, que estão sempre quebrando as expectativas da plateia através do humor caótico e da melancolia inerente à natureza da premissa.
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Esta é, na essência, uma história de confronto com a dureza da realidade. A trágica lembrança de como para a expressiva maioria das pessoas os sonhos são, quando menos, pueris, e, quando mais, até um tanto cruéis. O fato de o calor e a euforia do início se desdobrarem pela noite de inverno novaiorquina num ritmo frenético de comédia maluca só exprime essa luta inglória da protagonista para reter o mínimo que seja da alegria e realização que lhes parecia prometida.

Nem sempre a graça que o filme quer provocar é compatível com o aspecto social abarcado pela cena e, por isso, parte da comicidade de Anora soa mais desconfortável do que exatamente engraçado. Mas todos os acertos e irregularidades que podem aparecer no trabalho de Sean Baker são bordadas do mesmo tecido: a luminosidade da atuação de Madison, que enche a tela de sensações e carrega a plateia por sua jornada visualmente radiante, mas duramente humana.
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