CINEMA

Através de olhares e gestos, 'Manas' revela a brutalidade do abuso infantil

Longa de estreia em ficção de Marianna Brennand abriu na última sexta (1º) o XV Janela Internacional de Cinema do Recife

Publicado em: 02/11/2024 16:00 | Atualizado em: 02/11/2024 18:43

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Filme que abriu a 15ª edição do Janela Internacional de Cinema do Recife na última sexta-feira (1º), no aguardado retorno do Cinema São Luiz, Manas é um dos lançamentos brasileiros mais prestigiados e surpreendentes de 2024. Exibido no Festival de Veneza, onde venceu o prêmio da Jornada dos Autores (Giornate degli Autori), e premiado também pela crítica na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o longa-metragem de estreia em ficção da diretora Marianna Brennand é um conto ao mesmo tempo duríssimo e delicado sobre a realidade de meninas, crianças e adolescentes, em comunidades isoladas como a Ilha de Marajó, no Pará, onde a trama se desenrola.

No filme, que surgiu a partir de conversas que a cineasta teve com pessoas que lhe relataram histórias similares de abuso nas balsas, a jovem Marcielle (Jamilli Correa), de apenas 13 anos, vive com seu pai, Marcílio (Rômulo Braga), sua mãe, Danielle (Fátima Macedo), e seus três irmãos mais novos, sentido diariamente falta da irmã mais velha, que foi embora da região com um homem que circulava pela bacia hidrográfica da comunidade.
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O pai insiste que Marcielle durma na cama com ele, a leva para caçar no mato e a proíbe de vender açaí nas balsas. É, assim, em casa, que começa o ciclo de violência sofrido pela menina, que, através de seus olhares, tenta desesperadamente alertar à mãe do que estar acontecendo e busca meios de escapar da situação, sendo um deles vender camarões nas balsas escondida da família – onde um outro ciclo de abuso se desenrola.

Apesar de Manas ser o primeiro trabalho de Marianna Brennand em ficção, fica muito evidente tanto o controle espacial da cineasta – que nos coloca no isolamento daqueles rios e florestas de modo simultaneamente familiar e desorientador – como a sua sensibilidade na condução do elenco. Tudo no filme fala mais através dos olhares e gestos do que pela verborragia, ainda que, apropriadamente, o longa eleja a personagem da policial (vivida por Dira Paes) para fazer esse trabalho textual pontualmente.

É um filme que se equilibra muito bem, portanto, ao deixar muito clara a violência, sem se esquivar do peso que ela representa, mas jamais explorando o horror da situação de forma melodramática. Frequentemente, no trato desse assunto, os diretores acham que a mão pesada vai transmitir melhor a denúncia e descambam para a fetichização, ou, em outros casos, temem um afastamento da plateia e resolvem minimizar o impacto através da beleza visual.
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A força de Manas está em humanizar esse contexto – incluindo os personagens abusadores – para que ele pareça ainda mais concreto e contemporâneo do que poderia soar. Existe, sim, poesia, beleza e humor na vida de Marcielle e de sua família; sua mãe, conivente e silenciada num emaranhado histórico de abusos, tem um afeto nítido pela filha e falhas terríveis que destroem sua realidade. O filme não isenta personagens e evita condenações femininas, erro comum cometido por projetos de temática similar, como o forte e controverso O barulho da noite, de Eva Pereira. 

A água que circula a casa das personagens é sufocante pelo distanciamento do horizonte e, de algum modo, convidativa a um futuro longe daquele ambiente. A precisão visual e simbólica do trabalho de Marianna Brennand em Manas está, inclusive, em compreender como é possível, sim, escapar desse ciclo, mas está longe de ser fácil ou unilateral. Tragicamente, aliás, ele é resolvido das maneiras mais brutais.
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