COMPORTAMENTO

A dança no TikTok carrega questões estéticas e políticas complexas

Publicado em: 26/03/2022 14:10

A reprodução serializada de danças no aplicativo TikTok é atravessada por diversas questões estéticas e políticas (Cia Etc/TikTok/Poladia/Divulgação)
A reprodução serializada de danças no aplicativo TikTok é atravessada por diversas questões estéticas e políticas (Cia Etc/TikTok/Poladia/Divulgação)
Neste sábado e domingo, pela primeira vez no Recife, o fenômeno infanto-juvenil Now United se apresenta para milhares de crianças e adolescentes. O grupo, formado por 18 jovens de diferentes países do globo, foi concebido pelo emblemático produtor Simon Fuller, responsável também pelos projetos musicais de nomes como Spice Girls e Amy Winehouse e conta com a atenção massiva de milhões de pequenos ao redor do mundo, mas sobretudo, tendo o público brasileiro como o maior entusiasta de sua música de forte apelo pop e suas coreografias. 

E atualmente, o terreno mais semeado de música pop, coreografia e juventude é o aplicativo TikTok, desenvolvido na China e hoje transformado em um verdadeiro palco global de uma produção quase que serial de danças rápidas e repetidas, quase que criando uma própria linguagem de gestos e musicalidade. O grupo que vem ao Recife neste fim de semana se apropria bem dessa ferramenta para chegar em seu público alvo. As apresentações já realizadas no país, por exemplo, são iniciadas com tutoriais em vídeos de como realizar os passos que serão apresentados ali, aos moldes do que se propaga na jovem rede social. Já a própria  banda de abertura da turnê, a The Future X, foi formada a partir de audições feitas no TikTok, também por iniciativa de Simon Fuller, que diz ter buscado os melhores talentos da plataforma.

Já faz pouco mais de dois anos que aspectos como a comunicação entre jovens, a dança e o audiovisual ganharam uma certa nova dimensão com a expansão massiva da plataforma TikTok. Lançado em 2016, o aplicativo caminhou entre ter uma certa popularidade para brincadeiras de dublagem e ser um meio de comunicação com mais de 1 bilhão de usuários, comportando coreografias, comédias, tutoriais e mais algumas ações, incluindo ser protagonista de um entrevero geopolítico. E, como de praxe dos grandes fenômenos midiáticos dos nossos tempos, também abriga complexidades e contradições, entre ser um suporte para a criatividade para juventudes, como as periféricas, que passaram gerações sem ter acesso técnico à produção audiovisual, ao mesmo tempo em que tem um certo poder de incidir sobre essa criatividade por meio de suas políticas e algoritmos.

A plataforma chinesa hoje tem na população jovem, entre 13 e 24 anos, mais da metade de seu público, entre visualizadores e criadores. É o caso, por exemplo, de Beca Barreto, jovem da cidade do Paulista, com 20 anos de idade e mais de 20 milhões de seguidores na rede. Apaixonada pela dança desde criança, entre festas da escola e grupos da igreja, encontrou no TikTok um canal para dar seguimento a esse seu entusiasmo desde o ano passado. “Foi um espaço onde entrei para espairecer a mente em um momento de depressão e crises de ansiedade. Dançar era minha forma de expressão, para colocar a felicidade e a tristeza. Vi que meu trabalho por lá estava ajudando outras pessoas, em uma troca que me faz muito bem”, conta a tiktoker. 

Ela publica os vídeos de suas danças como pede a plataforma, com o espaço cênico reduzido à vertical e em um espaço de tempo de até 3 minutos, mas que raramente chega nisso. Não se trata de uma linguagem que é inaugurada pelo TikTok, mas que incopora e remodela tendências que vinham se desenvolvendo em outras plataformas, como o Snapchat, o Vine e os stories do Instagram. 
 
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De acordo com Adriana Amaral, professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e integrante da rede global de pesquisas TikTok Cultures Research, o aplicativo dá uma nova feição a esses conteúdos a partir de seu direcionamento bem específico de públicos. “Há um investimento por algoritmos muito nichado, muito focado nas hashtags e em subculturas, colocando isso sob uma proposta de personalização”, elucida Amaral. O processo de aceleração dos conteúdos já perpassava outras redes e também já encontrou até movimentos pontuais de uma certa retraída, como o aumento de caracteres permitidos pelo Twitter. 


VIDEODANÇA E DANÇA EM VÍDEO 
 
Dentro do campo da dança, Marcelo Sena, membro-fundador da pernambucana Cia Etc, há 20 anos trabalhando com videodança, também reconhece um certo território que já vinha sendo explorado descoberto pelo TikTok. A ideia das pílulas, os vídeos muito curtos, já estava presente em movimentos como as videoartes do movimento Fluxus nos anos 1960-1970 e em sua nova fase nos anos 1990. As danças se aproximam das coreografias de caráter mais videoclipísitico.  Contudo, uma forte estabilidade da câmera, que não “dança junto” acaba por afastar um pouco os rumos estéticos da plataforma do que acredita ser a videodança.

Mas a performance da dança e dos gestos para trazer mensagens ou estar como um meio para alguma outra além da dança em si, como a comédia,  também tem sua história. “A graça  e o humor é um campo muito rico de você ver a vulnerabilidade de um corpo humano se mexendo pelos riscos ou a própria graça do movimento. No começo da história do cinema, a gente já via esse fascínio pelo corpo humano se movimentando”, relata Marcelo. (CONTINUA APÓS VÍDEO)
 
 

Já dentro de um fluxo de conteúdos, há fenômenos como os da replicabilidade e criação de elos culturais entre culturas diferentes, já velhos conhecidos das redes. É assim que uma mesma dança de uma mesma música se espalha aos milhares ou o techno brasileiro Lésbica Futurista, de GA31, vira trilha sonora para garotos russos gravarem vídeos prosaicos em que nada se relacionam com a letra. Tal fenômeno também não é novo e o pesquisador Lúcio Souza, da Universidade Federal de Pernambuco, se debruça sobre uma versão semelhante dele que tem uma força parecida, ao pesquisar a incorporação do K-Pop na cultura jovem da Região Metropolitana do Recife. 

“Uma música que viraliza entre um círculo de jovens consumidores de cultura pop acaba chegando em outras esferas de sociabilidade e a gente vai percebendo com mais clareza as mudanças que acontecem nessa reprodução. Cada vez que ela é incorporada, você vai percebendo diferentes particularidades dos corpos que estão dançando ali, com marcas de gênero, classe, sexualidade, territorialidade”, elabora Lúcio sobre as implicações desse processo de intercâmbio entre diferentes juventudes do globo. 
 

E essa circulação de músicas dentro da rede é bem monitorada pelos criadores de conteúdo da rede em uma garimpagem pelo que está em alta em som e coreografia. Beca também constantemente essa busca, contudo suas postagens não se resumem a isso. “Muitos artistas me procuram para eu criar uma dança e eu faço. Mas não consigo dar conta de todos que pedem e também gosto de usar os áudios em alta das trend”, explica. 

O terreno de circulação da música e da dança no TikTok é visto por Marcelo como de uma certa riqueza por diferentes pessoas possuírem acesso a gravação e conquistarem uma produção de sua autoimagem. Também enxerga uma aproximação de novos corpos com a dança, como os videoclipes já fizeram anteriormente.  “Muitas pessoas de corpos diferentes podem se filmar, compartilhar, uma produção de imagem muito mais diversa. É interessante pensar nos corpos que dançam, essa ideia de qual pode dançar, qual não pode. Todo mundo pode dançar”, argumenta. 

Contudo, observa que a produção em grande número certamente também traz conteúdo que passam pelo mediano e o medíocre, assim como um receio pela perda de uma certa dimensão crítica da arte. “Não podemos ser ingênuos e ignorar que há algoritmos de grandes empresas envolvidos nesse processo. O algoritmo que entrega o que quer acaba sendo um critério de escolha. Você acaba seguindo muitos padrões, muitos modelos e isso, se achatando para ter um gosto médio”, afirma, mas também acredita que isso pode ser burlado e uma produção mais original e crítica pode ser encontrada por lá.
 
PÂNICO MORAL E "DANCINHA" 
 
Mas claro que tal conteúdo ultrapassa as barreiras do público jovem e chega à gerações mais velhas, seja para abraçá-lo ou criticá-lo. Para Adriana, acaba-se criando um certo pânico moral ao redor da plataforma e seu conteúdo, seja por um aspecto mais geracional dos mais velhos resistirem a alguns meios novos, como também há uma faceta mais política, impulsionada pelo fato de ser um aplicativo de origem chinesa. Vale lembrar que em setembro do ano passado, o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump decidiu banir a empresa responsável pelo aplicativo, a Bytedance, do país por considerá-lo como uma fonte de extração de dados dos norte-americanos à serviço da China. A medida foi revogada em junho passado por Joe Biden. 

“A gente vê que chamam as coreografias de lá por ‘dancinha’, no diminutivo, para dar a ideia de uma coisa rasa. Lembro do caso de um jogador de futebol que foi criticado pela torcida por fazer danças por lá”, relata Adriana, acreditando que o debate em torno do TikTok deve abandonar esse pânico e analisar mais profundamente as características da plataforma, as narrativas que ali se criam e seus usuários. 

“Claro que é uma plataforma que deseja o consumo das pessoas e que também vai trazer a já conhecida lógica de se ter muitos seguidores e o problema dos algoritmos direcionando as coisas (...) mas eu sou uma defensora da criatividade e acredito que pode vir muita coisa boa nesses novos formatos e que sua linguagem também poderá se desdobrar e até ser apropriada por outros meios”, elabora Amaral.

Já Lúcio vê nesses olhares sobre as danças na plataforma uma reprodução de uma problemática abordada pelo trabalho da pesquisadora norte-americano Diana Taylor sobre performance: a do logocentrismo. 

“Nos processos de colonização, há uma força muito grande do logocentrismo, em que as formas de expressão da escrita são muito mais valorizadas do que as formas de expressão do corpo, historicamente era uma forma de se distinguirem dos povos nativos, menos ligados à escrita”, relata Lúcio, também argumentando sobre a autenticidade dessas performances no TikTok. “A gente sempre está fazendo essas performances e esse aspecto da teatralidade não significa que são menos verdadeiras. Há um grau de seriedade e realismo, não é só brincar de dançar. Há esse comprometimento no TikTok também, de uma atividade que convida o corpo a se entregar”, conclui. 

Todos apontam que o caráter recente do fenômeno não permite ter tantas certezas sobre implicações de seu modo de ser na comunicação e na linguagem artística dos próximos anos. Pode ser um fenômeno duradouro, como também pode estar sujeita em breve outros jovens que busquem subverter esse tipo de conteúdo e buscar uma direção contrária de formato. 

Por agora, o possível é observar com rigor e abertura às mais diversas dinâmicas que surgem por lá, incluindo o comportamento da juventude em rede, mas também a ação de outros atores, como divulgadores científicos, profissionais da comunicação e até políticos, pois, como ressalta Adriana Amaral, “vivemos um momento em que política e entretenimento têm fronteiras cada vez menos definidas” com a primeira usando a linguagem da segunda, indicativo forte de uma complexidade que vai além de uma dança de 30 segundos.

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