Por dentro do Comando Litoral

Drogas, armas e muita violência: documentos mostram pela primeira vez o Raio-X de uma das principais facções criminosas do Estado

O Diario de Pernambuco teve acesso, com exclusividade, a mais de 5 mil páginas de investigações que miram a alta cúpula do Comando Litoral, o antigo Trem Bala; confira

Publicado em: 09/09/2024 05:18 | Atualizado em: 09/09/2024 10:23

 (Rafael Vieira/DP Foto)
Rafael Vieira/DP Foto

 
Com base na praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca, um dos principais cartões-postais de Pernambuco, a facção Comando Litoral, antes chamada de Trem Bala, é famosa pela violência usada para aniquilar seus inimigos e controlar o tráfico de drogas e de armas de fogo.

A atuação no Grande Recife começou em meados de 2017. Em franca expansão, o grupo criminoso já fatura milhões, tem cerca de 20 lideranças mapeadas e até possui braços em estados vizinhos, como Sergipe, Alagoas e Rio Grande do Norte, segundo relatórios do Ministério Público (MPPE) e da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado em Pernambuco (Ficco).

O Diario de Pernambuco teve acesso, com exclusividade, a mais de 5 mil páginas de investigações que miram a alta cúpula do bando – agora, intitulado Comando Litoral Sul (CLS), na área de origem, e de Comando Litoral Norte (CLN), em novas regiões. Os documentos oficiais trazem à tona, pela primeira vez, o organograma da facção e qual é o papel exercido pelos integrantes mais importantes.


De acordo com as investigações, o topo da pirâmide é ocupado por Osnir Cândido Urbano, o Osnir Cabeça, de 47 anos, acusado de construir uma rede de fornecedores em outros estados e de ser o verdadeiro “dono” de toda a cocaína, maconha, skunk e crack vendidos ilegalmente.

Hoje, o grupo mantém relações estreitas com o Comando Vermelho (CV), facção de dimensão nacional, que nasceu no Rio de Janeiro. Com integrantes fortemente armados e até sistemas de câmeras para vigiar a polícia, a estrutura do Comando do Litoral envolve desde criminosos que atuam como “olheiros” a um núcleo especializado em matar desafetos e concorrentes. 

Alta cúpula

Osnir Cabeça foi preso na sua mansão, dentro de um condomínio de luxo na cidade de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, em maio de 2023. Na ocasião, os policiais ainda apreenderam documentos falsos, dezenas de jóias e anotações do tráfico de drogas.

Só os valores que estavam descritos nos papéis encontrados somavam mais de R$ 6 milhões – um indicativo da alta lucratividade dos negócios ilícitos, segundo investigadores. Em depoimento à Justiça, traficantes responsáveis por bocas de fumo também admitiram que faturaram R$ 10 mil por semana, cada um, em meados de 2018, ainda no início das atividades da facção.

Segundo as investigações, Osnir é chamado de “chefe” e considerado superior hierárquico até de Evanilson José da Silva, o Bambam, de 37 anos – fundador do antigo Trem Bala e tido como o número 2 do grupo atualmente. Com três mandados de prisão em aberto, Bambam chegou a ocupar o posto de bandido mais procurado do Estado e foi pego na praia de Ponta Negra, em Natal, em março de 2022.
 


O poder de Bambam na facção é amplo. De acordo com o MPPE, ele age como “dono” do território dominado pelo Comando Litoral, controla os pontos de tráfico e escolhe quem vai gerenciar cada boca. Também é o responsável por aprovar a entrada de novos integrantes e por dar ordens de distribuição das drogas, tirando ou colocando as cargas em cada local.

Osnir e Bambam estão presos no sistema penitenciário federal, de segurança máxima, onde são supervigiados e perdem o direito a visitas íntimas. Apesar do isolamento dos chefões, os relatórios oficiais apontam que outras lideranças conseguem assumir os negócios e continuam emitindo ordens de dentro de presídios estaduais.

Cadeia de comando

Os chamados “gerentes” do CLS aparecem na sequência da cadeia de comando. Para as autoridades, os principais são Pedro Paulo de Jesus Teixeira, o Carioca, de 38 anos, envolvido em ordens de execuções e na expansão do números de bocas de fumo, e Emerson José da Silva, o Messinho, de 32 anos, que é irmão mais novo de Bambam e teria chegado a assumir as decisões da facção neste ano.

Carioca está detido em Sergipe desde junho de 2023. Já Messinho, capturado pouco depois, em outubro, morava em Maragogi, no Litoral de Alagoas, e foi levado para uma cadeia no interior de Pernambuco. Seriam deles, por exemplo, ordens para comprar e vender fuzis, pistolas e metralhadoras.

O outro “gerente” é Regival Alves da Silva Sorriso, o Val, de 46 anos, apontado como tesoureiro do CLS e diretamente ligado a Osnir. Com papel de arrecadar o dinheiro do tráfico e fracioná-los em depósitos menores para diversas contas, ele teria acumulado a função de contatar fornecedores e abastecer os traficantes do grupo após a prisão do chefão. A defesa nega e diz que o acusado tem padrão de vida simples, incompatível com os crimes pelos quais foi denunciado.

Osnir, Messinho, Carioca e Val são réus por lavagem de dinheiro e organização criminosa. Eles contestam as provas apresentadas e alegam inocência nos autos. Em audiência de instrução, realizada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), na quinta-feira (5/9), os acusados optaram por permanecer em silêncio.

Violência extrema

Já Bambam e outros 14 membros do CLS foram condenados em outro processo envolvendo a facção, julgado em março. Entre os sentenciados, está Tiago Mateus de Lima, o Tobias, de 24 anos, integrante do braço armado do grupo e suspeito de praticar mais de 20 assassinatos no Litoral Sul do Estado.

O rastro de sangue é uma das marcas do CLS. Na cidade de origem, a facção inicialmente disputou o território com o Primeiro Comando de Ipojuca (PCI), outro grupo local, em uma guerra que fez o número de homicídios explodir na cidade. Há relatos de vítimas torturadas e até de corpos enterrados de cabeça para baixo no mangue.

Nem mesmo as crianças ficam a salvo da violência extrema. Em janeiro de 2017, seis integrantes do CLS chegaram a matar a tiros um bebê de apenas 1 ano e 2 meses e o padrasto dele, em meio à disputa pelo tráfico de drogas em Ipojuca, hoje dominada pela facção. 

Investigações apontam, ainda, que foram líderes do bando que orquestraram a série de protestos na comunidade de Salinas, após a morte da menina Heloysa Gabrielle, de 6 anos, em uma ação policial realizada em março de 2022. Para autoridades, o episódio também marca uma demonstração de força do grupo, que se espalhou por municípios das adjacências, como Escada e Sirinhaém.

Expansão

O CLS tem avançado desde então. No Cabo de Santo Agostinho, onde a facção também tem presença consolidada e controla o tráfico na praia de Gaibu, a expansão é relacionada a 30 homicídios, registrados em apenas um mês, em janeiro de 2022, segundo autoridades.

“A expansão de referida organização criminosa (...), em razão da necessidade de aniquilar seus concorrentes no tráfico de drogas, vem causando uma verdadeira guerra pelo comando do comércio de substâncias entorpecentes, com inúmeros homicídios no litoral sul, litoral norte e também na região metropolitana”, disse o MPPE, em manifestação à Justiça, no mês passado.

Jaboatão dos Guararapes e, mais recentemente, Paulista, ambos no Grande Recife, são outras áreas que registram presença da facção. Já em Itamaracá, no Litoral Norte, a guerra do tráfico ficou exposta após a morte do bebê Gael Lourenço França do Carmo, de apenas 9 meses, em fevereiro de 2024. Ele foi baleado, dentro do berço, por um grupo de encapuzados. Dias depois, outra criança Jackson Kovalick Dantas Silva, de 10 anos, foi assassinada a tiros.

Em nota, a Secretaria de Defesa Social (SDS) afirma que “segue comprometida no combate à atuação de organizações criminosas em Pernambuco”. Também diz que “monitora a presença e coíbe a instalação e expansão dessas organizações” por meio do trabalho integrado de suas operativas, incluindo o setor de inteligência.

“A SDS esclarece, ainda, que preserva o sigilo em prol da efetividade das ações a serem realizadas pelas polícias. Dessa forma, informações sobre esses grupos criminosos devem apenas ser usadas na repressão à sua atuação”, diz o texto.

Isolamento de lideranças é uma das medidas 

O Sistema Penitenciário de Pernambuco tem, atualmente, pouco mais de 29 mil encarcerados. O déficit é de 14 mil vagas, segundo a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária (Seap). 
 
As unidades  prisionais pernambucanas vivenciam um problema que se espalhou pelo resto do País: as facções criminosas que se "enraízam" no sistema. Estima-se que detentos de até 16 grupos distintos estejam atrás das grades, o que levou o governo a fazer um Raio-X da situação e adotar providências.
 
Uma das mais importantes é o isolamento  de lideranças de facções, como Comando Vermelho, PCC e o Comando Litoral, o antigo Trem Bala. "Temos uma peculiaridade em Pernambuco. Aqui, muitos grupos mudam de nome para não ficar igual ao de outros estados", observa o secretário estadual de Administração Penitenciária, Paulo Peres.
 
Isolamento
 
Um levantamento feito pelo Governo aponta que transferências de presos entre unidades estaduais e até para outros Estados, onde ficam presídios federais. Segundo a Seap, entre setembro e outubro de 2023, 100 detentos foram isolados, de uma vez só, na unidade de Itaquitinga II, na Zona da Mata Norte pernambucana.
 
"Depois, tivemos isolamento de centenas de lideranças em outras unidades. Teremos uma terceira etapa de transferências prevista", informou Peres. A Seap aponta que muitas informações não podem ser repassadas para não comprometer a segurança do sistema.
 
No entanto, diz que, em um ano e meio da atual gestão estadual, foi possível investir nas ações com a contratação de 600 policiais penais. O secretário ressalta o trabalho que vem sendo feito pela Força Integrada contra o crime Organizado (Ficco).
 
Há três anos, ela conta a parceria entre as polícias pernambucanas, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). "Vem sendo um grande êxito. O trabalho integrado dá bons frutos", observa Peres. 
 
Outra medida para amenizar a situação no sistema penitenciário do estado é a remoção de detentos do Complexo do Curado, na Zona Oeste do Recife. Após uma intervenção de organismos internacionais, em 2022, a unidade, que tinha 6 mil homens, agora conta com cerca de mil. 
 
Expectativa
 
Até o fim de 2024, o sistema deve receber quase 3 mil novas vagas. O Governo Raquel Lyra (PSDB) espera encerrar o mandado, em 2026, com mais 7 mil vagas no sistema. Teremos novas vagas em unidades Araçoiaba (Mata Norte) e no novo presídio do Complexo do Curado", acrescentou o secretário.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL