MOSTRA DE SP

'O Senhor dos Mortos', novo filme de Cronenberg, é seu trabalho mais impenetrável

Diretor de 'A mosca' e 'Videodrome' retorna com filme cerebral e farsesco sobre homem obcecado pela decomposição da falecida esposa

Publicado em: 21/10/2024 13:04 | Atualizado em: 21/10/2024 13:04

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Chegando ao Brasil em primeira mão como parte da programação da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, O senhor dos mortos, novo filme de David Cronenberg, é provavelmente o seu trabalho mais impenetrável entre todos os seus filmes mais recentes.

Diretor celebrado pelo horror corporal de clássicos como Scanners, Videodrome e A mosca, mas que reinventou seu próprio cinema nas últimas décadas com trabalhos mais cerebrais e farsescos como Cosmópolis e Um método perigoso, o cineasta canadense retornou ao gênero que fez sua fama no recente Crimes do futuro, de 2022, que já funcionava como uma reunião entre os elementos grotescos do seu estilo mais reconhecível e a sobriedade e minimalismo da fase contemporânea. Agora em O senhor dos mortos, ele retoma toda a sua temática quintessencial com uma morbidez mais presente na verborragia do que necessariamente nas imagens - o que provoca ao mesmo tempo curiosidade e decepção.

Na trama, um desenvolvedor de tecnologia que perdeu sua esposa para uma doença terminal, Karsh (Vincent Cassel), cria um sistema funerário chamado GraveTech, no qual é possível, através de um monitor acoplado às lápides, acompanhar o processo de decomposição dos entes queridos. Quando o cemitério é invadido e muitas tumbas destruídas sem uma razão aparente, ele começa a investigar o ocorrido e passa a descobrir possíveis conspirações de corporações interessadas no seu dispositivo. 
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A contenção do próprio estilo na fase de maturidade da carreira não é uma exclusividade de Cronenberg e, ainda assim, é interessante observar como o assunto das mudanças e/ou deteriorações da carne perpetuam mesmo seus trabalhos mais esquivos no trato com a violência. Este aqui, nesse e em outros sentidos, é um filme-raiz dele sem tirar nem por. Assim como em Crimes do futuro, o diretor usa da imagem digital e da computação gráfica propositalmente artificiais para mostrar e sugerir o grotesco, sem se sujar demais nesses elementos, mas agora em uma chave gélida, não raro cômica, que expõe muito mais conceitos do que impacto visual/dramático.

Descrevendo a trama principal, pode até dar a impressão de que o filme segue algum foco narrativo, mas a verdade é que O senhor dos mortos é um dos filmes mais estruturalmente desorganizados da extensa obra de Cronenberg. O foco da trama está constantemente mudando entre seguir uma linha mestra e inserir subtramas, especulações e possibilidades e em nenhum momento o mistério que permeia a história parece ganhar qualquer tipo de tração ou tensão, já que o roteiro está mais voltado para blocos de diálogos do que na progressão da atmosfera ou dos arcos dos personagens. 
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O senso de humor descarado acaba sendo o lado divertido de acompanhar em O senhor dos mortos, especialmente devido ao olhar clínico de Cronenberg sobre o ridículo de certas ações e fetiches. É peculiar, aliás, como o filme se lambuza mais com a satirização da inteligência artificial, por exemplo (um dos temas proeminentes aqui), do que com os aspectos tipicamente 'cronenberguianos'.

Sendo este um trabalho feito por um diretor que sempre investigou os limites da carne e do sangue, fica a impressão também de uma atmosfera propositalmente anestesiada que remete ao próprio desalento do seu autor com relação ao controle cada vez maior do que é inorgânico, digital, irreal. É uma pena que, para transmitir essas ideias, O senhor dos mortos ofereça uma dramaturgia tão difícil de estabelecer qualquer relação além da conceitual.
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