MOSTRA DE SP

'Serra das Almas', de Lírio Ferreira, mescla o humor e a contundência do cinema pernambucano

Thriller de ação contado em ordem não linear tem grande elenco e abraça as catarses do cinema de gênero, mesmo que estrutura pese o ritmo da primeira metade

Publicado em: 26/10/2024 09:00

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Exibido no Festival do Rio e chegando agora na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Serra das almas é o novo longa-metragem do diretor recifense Lírio Ferreira (Baile perfumado, Árido movie) e tem mais do cinema, da ousadia, do sotaque e do humor pernambucano do que qualquer outro filme da seleção nacional do evento este ano.

A trama parece, a princípio, um thriller de sequestro convencional: acompanhamos no início duas mulheres dentro de uma van sendo ameaçadas aos gritos por um grupo de homens armados que as levam para uma casa isolada no meio do mato, no alto de uma serra, onde ficam em cativeiro. Sem muita contextualização, mas alternando entre diferentes linhas temporais para mostrar a relação desses amigos, das mulheres e um roubo de joias que desencadeou todo o conflito, o filme passa a inserir também elementos políticos, colocando no enredo conflitos e personagens que não parecem tão conectados à ação apresentada nos primeiros minutos.
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Em princípio, essa narrativa intrincada pode atrapalhar um pouco o fluxo de Serra das almas, cujo elenco excelente (encabeçado por Julia Stockler, Mari Oliveira, Ravel Andrade e David Santos) interage num equilíbrio notável entre a espontaneidade e as referências clássicas de gênero. Precisamente por conta da naturalidade e dinamismo dos atores nas conversas soltas, a dramaturgia e o senso de urgência do longa acaba oscilando na sua primeira hora. Toda essa introdução tem grandes momentos, mas o projeto soa indeciso entre abraçar uma lógica mais direta de causa e consequência ou se construir a partir desse realismo da câmera na mão de drama indie. 

Quando as subtramas vão se encadeando e o roteiro passa a amarrar as pontas, Serra das almas cresce inclusive do ponto de vista de encenação: os planos fechados de Lírio, que inicialmente soam intrusivos, valorizam mais o trabalho dos atores e a câmera sempre viva é bastante eficiente na tensão de econômicas cenas de ação. Tematicamente, essa segunda metade também melhora ao se entregar aos arquétipos de histórias de bandidos, com viradas clássicas habilmente trabalhadas pela direção de atores e pelo texto. O diretor parece deixar os atores muito soltos em suas composições inconfundíveis e coloca a cargo do senso de humor o abrasileiramento das referências que está buscando.

A brutalidade é outra característica que o filme jamais perde e, assim como outros projetos pernambucanos recentes que lidam com situações de cerco não tão diferentes (ao exemplo do incisivo Propriedade), Serra das almas não usa a violência como fim e nem como meio, mas como parte indivisível daquele cenário e daquela narrativa. O sangue, enfim, não está presente como válvula de choque, mas também não se esconde quando o drama demanda.
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No caso deste filme, particularmente, o discurso sobre a violência parece de denúncia óbvia, especialmente ao sistema político e à corrupção (devido ao personagem do senador interpretado por Bruno Garcia), mas, à medida que o cerco se fecha, tudo passa a ser mais sobre as decisões dos protagonistas que se colocaram naquele lugar do que propriamente sobre seus passados. O roteiro verbaliza, de fato, várias informações acerca da relação pregressa deles, mas, em última análise, nenhuma das almas dessa serra é redimida.
 
Ser conciliador ou propositivo demais, afinal, não costuma ser o melhor caminho para um thriller e esse abraço às catarses do cinema de gênero a partir de uma lógica de adaptação regionalista tem rendido nos últimos anos vários projetos que, com maior ou menor sucesso, sempre estimulam bons debates formais e sociais que, frequentemente, outros que tentam fazê-lo com auto-importância temática apenas arranham a superfície. 
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